A nova guerra cultural, sobre a maneira como devemos olhar a História, é travada num campo curioso. Quem acredita que o passado serve para deixar quietinho está a querer de facto reescrevê-lo, visto que jamais em tempo algum isso aconteceu.
Crónica de João Maria Jonet
Tal como o melhoramento pessoal ou a manutenção da forma física, o entendimento da História não é uma coisa que possamos dizer que acabámos, tendo deixado o assunto resolvido. Mesmo que possamos fingir que o nosso trabalho está concluído e que já não há nada a acrescentar, a verdade é que vamos sempre fazer um disparate, vamos sempre ganhar aqueles quilos e vamos sempre descobrir aquela nova perspetiva que nos diz que temos de voltar à carga. Há missões que nos lembram Sísifo, porque nunca podem ser realmente acabadas.
Claro que era preferível podermos ir ao ginásio 7 vezes e nunca mais engordar na vida, mas quem esteja convencido disso só pode ser considerado um lunático. Da mesma maneira, é difícil não considerar louco quem grita que a História não pode ser rescrita e que só radicais poderiam querer olhar para o passado de forma crítica.
A nova guerra cultural, sobre a maneira como devemos olhar a História, é travada num campo curioso. Quem acredita que o passado serve para deixar quietinho está a querer de facto reescrevê-lo, visto que jamais em tempo algum isso aconteceu. Quem supostamente quer a revolução sem precedentes não está a fazer mais senão o que é tradicional: olhar o passado com uma avaliação crítica do presente.
Este devaneio surge-me a propósito de duas recentes decisões. O reconhecimento do Governo alemão do seu genocídio na colónia do Sudoeste Africano (atual Namíbia) no início do século XX e a declaração do Governo francês a penitenciar-se por não ter conseguido parar o genocídio do Ruanda nos anos 90. Aliás, esta decisão francesa até pode ser posta no contexto maior da abordagem de Macron, que instituiu uma comissão que procura examinar os erros e as atrocidades no passado colonial francês.
Macron e Merkel, esses radicais de esquerda, alinham assim na narrativa do politicamente correto, indo contra os valores tradicionais cristãos da Europa, continente que só por acaso nunca viu o cristianismo unido dominar o seu território. Seguem uma longa tradição de invenção histórica nos seus países, que são, também eles, invenções bem recentes e rebuscadas.
A Alemanha, nação convenientemente inventada há menos de 200 anos para unir uma série de miniestados falhados à gigante Prússia (cujo território original já não fica na Alemanha), traça a sua tradição épica até aos teutões, na Idade Média. Esses cavaleiros, heróis da propaganda nazi, foram fundados na Síria e só mais de um século depois puseram os pés no atual território germânico. Mesmo isso foi só de passagem, porque se fixaram onde hoje são a Lituânia e a Polónia (e era a Prússia).
França é mesmo assim mais coerente. Constituiu-se cerca de 300 anos antes da Alemanha, em termos práticos. Apesar de só no século XIX os seus habitantes terem começado a falar o francês e a considerarem-se franceses, a verdade é que o território atual já estava minimamente consolidado desde que se expulsou a coroa inglesa, proprietária anterior de metade do País, e se ocuparam os pequenos estados autónomos circundantes. Ao contrário dos Teutões, a figura que dá ânimo ao mito histórico francês, Joana D’Arc vivia de facto no que hoje é França, mas lutou por uma dinastia francesa contra outra. Sim, porque a Guerra dos 100 anos, apesar de ter sido reescrita romanticamente para ser um confronto épico entre ingleses e franceses, foi de facto uma guerra civil entre vassalos de soberanos com aspirações ao trono de Paris.
Normalíssimo será que estes países, habituados a inventar culturas e normas sociais para estenderem o seu poder dentro dos seus territórios europeus, tenham também pela força e pelo terror tentado criar extensões das suas pátrias no continente africano, onde as pessoas estavam mais vulneráveis ao cano das suas espingardas.
Estranho é que toda a gente pareça surpreendida com a complexidade que a História traz consigo. Talvez não saibam também que o Infante D. Henrique é o famoso “Henry, The Navigator”, aquele que a propaganda britânica escolheu no século XIX como o principal responsável pela expansão marítima portuguesa, visto que só o filho de uma inglesa podia ter construído um projeto de expansão tão extraordinário num país tão pequenino.
Não querer compreender que o nacionalismo que hoje sentimos com ardor nos nossos corações vem de um conjunto de mitos romantizados escritos no século XIX tem tanto de cómico como de assustador. Os que tratam um livro de História como uma Bíblia esquecem que, nos livros de História dos romanos, os lusitanos eram bárbaros intratável. Nos livros dos cristãos que a seguir vieram (e a quem agora chamamos bárbaros, talvez porque aqui chegaram pagãos) os romanos eram hereges incuráveis. E o mais engraçado é que nos nossos livros atuais, os três conseguem sair bem vistos. Confusos? É normal que sim. A História muito resumida não é fácil de perceber. Se não a contarmos com bons e maus, heróis e vilões, como se fosse um conto de crianças, ela torna-se impercetível para a maioria das pessoas, porque é assim que ela nos foi ensinada.
É normal na História encontrar pessoas que reescrevem a História (normalmente os vencedores) e pessoas a gritar para que parem (normalmente quem perdeu). Agora é assim de novo. Enquanto os vencedores das guerras culturais avançam num processo de análise cautelosa do passado na tentativa de aprender com os erros nele cometidos, abandonando os dogmas irracionais do passado, os derrotados das guerras culturais choram por uma História que nunca existiu. Derrotados no campo das ideias e não em batalha, sobreviveram para contar a sua derrota e tentar convencer-nos de que tal nunca aconteceu.
Mesmo que tivessem morrido a lutar pelo seu direito a ser racistas, como aconteceu na Guerra Civil Americana, não seria de esperar que a sua tendência reacionária desaparecesse da face da terra. Afinal, por mais que o queiram negar, a revisão que estão a tentar fazer, reescrevendo o futuro e inventando passados, não tem nada de inédito. Este jogo da corda perpétuo entre progressistas e conservadores tem afinal mais do que duas dimensões. Ambos procuram revisitar a História para tentar que ela siga a sua narrativa e ambos terão pontos para se agarrar.
Numa batalha tão confusa, vale a pena pensarmos a História com um bocadinho mais de profundidade, entendendo que o que ali está é um conto e não uma lei e que felizmente temos muita gente especializada na sua interpretação. A ideologia dos historiadores deve obviamente ser posta numa balança, mas se continuarmos a procurar apenas a História que nos faz sentido ou com a qual concordamos, dificilmente conseguiremos ter uma discussão séria. E, meus amigos, discutir foras de jogo com quem não os vê na sua própria equipa é uma coisa para a qual eu nem com os copos numa tasca tenho paciência.
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