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Estranhamente inevitável

19 anos depois, o Sporting era campeão nacional de futebol. Quando o apito soa, a realidade instala-se. Quem não adora futebol perdeu uns minutos de vida, porque ali o relógio parou.

Fotografia de Maria Madalena Freire

Testemunho de João Maria Jonet

Sportinguista


Escrevo estas linhas no dia 15 de Maio, ainda atordoado pelo que vivi no dia 11 (e também 12, na verdade). Vão-me perdoar o atraso, de facto podia ter começado a escrever uns dias antes, talvez até umas semanas, mas para além da filosofia de “jogo a jogo” ser sacrossanta para mim (devoção naturalmente motivada pelo medo de que isto fosse bom demais para ser verdade), eu honestamente não sabia o que é que ia sentir, portanto ter um texto pronto era um exercício esquisito. Aliás, passados 4 dias, eu continuo sem saber muito bem se já senti isto tudo ou não.


É um dia engraçado para escrever um texto sobre o que o Sporting significa para mim. Um dia em que faz 57 anos que o Sporting ganhou o seu único título europeu, com um golo de canto direto de João Morais, um cascaense como eu que foi contratado enquanto outro cascaense, o meu bisavô, terminava o seu mandato como Vice-Presidente do clube.


Eu nunca conheci o meu bisavô - que morreu quase trinta anos antes de eu nascer - mas como ele é a razão por eu ser do Sporting, há poucos dias em que não me lembre dele. O pai da minha avó paterna era um sportinguista de tal forma fanático, que não descansou até que todos os netos fossem ferrenhos sportinguistas, não querendo correr riscos com o meu avô, que dizia não querer saber de futebol (era mais dado ao atletismo), apesar de carregar um apelido (também o meu) de um sócio fundador do Benfica.

Muito do que explica a razão por que atiro a minha característica racionalidade às ortigas cada vez que 11 rapazes de verde e branco entram numa quadra está no parágrafo anterior. Isto porque até aos meus 12 anos também partilhava da atitude diferentona pseudo-snob que atinge muitos dos que nos últimos dias reviram os olhos às demonstrações de loucura dos sportinguistas. As críticas mordazes daquela criança à falta de chá dos adeptos de futebol rapidamente se esfumaram perante o ostracismo social a que elas o vetavam. Da mesma maneira, aquele pequeno nerd percebeu que o futebol tinha mais profundidade do que os seus comentários redutores faziam prever. Havia História, Geografia, Política e Religião para discutir enquanto se olhava o verde dos relvados.


Assim, entre as páginas de Wikipedia, os livros e as novas oportunidades para conversar e conviver com a família, todo um novo Mundo de socialização se abriu. Nas amizades, a coisa ia mais pela rivalidade, nunca tive muitos amigos do Sporting (enorme abraço aos que tenho, especialmente aos que compõem a Direção deste Jornal comigo e que abracei efusivamente no Marquês), mas mesmo com esses dava para haver mais conversa. À medida que crescemos, alguns foram ligando menos, mas agradeço por tudo ter tantas memórias a jogar pessimamente à bola, tentando imitar o melhor que podia plantéis do Sporting que ia andando entre o 3° e o 7° lugar.


Mas a maior descoberta de todas não foi nenhuma destas. Foi a coisa que me faz mais falta de todas as que a pandemia me tirou: ir a Alvalade ver o Sporting. Semana sim, semana não, às vezes com mais frequência, o ritual de estar com a minha família, comentar o onze, cantar e celebrar com abraços a todos (e o tradicional beijo na testa do meu primo Zé) era um momento alto. Deixei de ir à missa mais ao menos na mesma altura em que comecei a ver futebol no estádio e acho que sei porquê. A experiência emocional era mais espetacular e os arrepios eram mais frequentes.


Por isto tudo, depois de 10 anos a ver o Sporting religiosamente sem grandes motivos para festejar (os meus momentos mais memoráveis tinham sido todos no Jamor), a última terça-feira foi estranha. Estranha porque apesar dos nervos, havia no ar uma aura de inevitabilidade.


Saindo de casa de manhã em Lisboa, cidade para a qual fui viver entretanto, senti essa aura na rua. Precisando de ganhar a uma das piores equipas do campeonato em casa para ser campeão, estavam reunidas as condições para a consagração, mas a falta de prática na coisa não convidava a muita confiança. Apesar disso, ecoavam as palavras da apresentação de Rúben Amorim nas ruas que pareciam confluir para o Estádio de Alvalade. “E se corre bem?”


Chegada a hora do jogo, onde ia um iam todos. Com a incerteza dos festejos convidando a pelo menos uma recepção ao autocarro para mostrar aos jogadores a força brutal dos adeptos, só havia um desfecho imaginável: a vitória.


Durante aquele jogo, visto na rua sem grandes considerações sobre o esquema tático ou a cadência, as pessoas pareciam dar por garantido que, passados os 90 minutos, gritariam. Tiveram portanto uma hora e meia para lidar com aquela estranha inevitabilidade. 19 anos depois, o Sporting era campeão nacional de futebol. Quando o apito soa, a realidade instala-se. Quem não adora futebol perdeu uns minutos de vida, porque ali o relógio parou. Os festejos das pessoas à minha volta pareciam em câmara lenta, enquanto o abraço da minha irmã me lembrava que uma pessoa nascida em 2003 estava perante algo verdadeiramente inédito.


Posso não ter tido nesta equipa do Sporting os ídolos de miúdo, que tive pena de não poderem andar à volta daquele Marquês pintado de verde comigo. A verdade é que os livres do Matias Fernandez, os mortais do Nani ou os golos do Montero podiam não ter feito parte da época, mas tinham feito com que aquilo fosse especial para mim.

Mais especial foi pensar que a 15 de Maio de 2018 o Sporting quase acabou, pondo em perigo este elo de ligação entre mim, a minha família e a minha comunidade por causa de devaneios lunáticos de pessoas que se achavam maiores que o clube.

Tudo isso me veio à cabeça enquanto tentava explicar porque é que estava tão feliz, mas no fim da festa, depois do meu capitão passar por mim, depois de ter ligado a toda a família e encontrado tantos amigos, a conclusão foi simples. O Sporting é tudo para mim porque foi a partir do Sporting que fiz quase tudo na vida. Esse sentido de propósito vale mais do que qualquer lógica que o justifique. A inevitabilidade fazia sentido, porque o Sporting tinha de me fazer feliz. Tinha de me fazer feliz, porque mesmo nos piores momentos, foi sempre isso que fez.


Às voltas naquele Marquês verde e branco, a lembrar-me do meu bisavô que nunca conheci (e também a invejar a quantidade de vezes que ele deve ter ido ali, que acho que foram 15), a pensar nas discussões que tive sobre a qualidade do Carrillo com o meu tio ou da fúria que senti com o Sá Pinto numa tarde de Maio de 2012, enfim a pensar no que tudo aquilo me fez sentir por pessoas que podiam não ter nada ou ter tudo a ver comigo, percebi porque é que aquilo me fazia feliz. Eram 4 da manhã, chovia-me em cima e eu não podia estar mais feliz porque milhares de desconhecidos me tinham atirado com fumo enquanto gigantes com os copos passavam por mim de autocarro. E eu ia poder passar aquela história a outras gerações tal como as histórias tinham chegado a mim. O Sporting estava cá quando eu nasci e vai continuar quando eu morrer e isso vai permitir que eu, como o meu bisavô, vá vivendo com ele. Se isso não é incrível, não sei o que é.

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