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Falta silêncio, o ruído ensurdece



A história repete-se. A memória falha, perde importância, afasta-se daquela que é a realidade presente, torna-se distante. Cabe-nos a nós não deixar esquecer a história, não deixar esquecer quem hoje faz parte dela.

por Mariana Rosendo, estudante de Medicina na NOVA Medical School



Ilustração de Carolina Rosendo



Como torna efémero tudo o resto, o tempo de vida de uma palavra.

- George Steiner Porque pela palavra se conserva a memória, conserva-se o direito a recordar e a ser recordado. É necessário quem queira lembrar, quem queira partilhar a memória que em si guarda, quem queira agir para poder mudar a sua conceção futura.


E quem diz palavra diz frame.


Diz longas rodagens de vida (e morte) em cena. Diz captação do real, do horrível, captação do “normal”, do heroísmo do dia-a-dia, mas que de normal nada tem. Quando é que o anormal passa a ser normal?


Debaixo do solo, debaixo das bombas. Debaixo dos nossos olhos.


Al-Ghouta Oriental, Síria. Arredores de Damasco.

É lá que se ergue (ou se escava) “A Gruta” onde, durante 5 anos, a Drª. Amani Ballour e a sua equipa travaram todos os dias uma luta, comum a tantas outras, no meio dos destroços daquilo que mais triste e cruel pode nascer da vontade do Homem: a guerra.


Sobre a guerra e os rastos e restos humanos que deixa por onde passa, o documentário de Feras Fayaad não permite esquecer: não aqueles que todos os dias se levantam um pouco mais magoados por um mundo que parece tê-los esquecido, não aqueles que, por motivos externos a si mesmos, deixam de o poder fazer. Aos 5, aos 42, ou mesmo aos poucos meses de idade, diariamente se somam aqueles privados dessa oportunidade, a quem é negado o maior bem de todos: o de uma vida digna em segurança. São gerações inteiras que crescem, vivem e morrem sob um véu de poeira, destroços e perda, e que nunca chegam a saber o que é a tal vida digna.


A fome como instrumento da guerra, a recusa da evacuação médica, o uso das armas químicas, os ataques aéreos cegos contra civis, escolas e hospitais. Esta foi a realidade de Al-Ghouta durante o cerco que se prolongou por 5 anos e 7 dias, e que nenhuma alternativa ofereceu a quem ficou para trás senão a de fugir para a escuridão onde se enterram os mortos e onde os vivos lutaram por sobreviver. Mais do que por viver.


A ideia de irmos para o subsolo foi simples. Tão simples como a morte à superfície. A causa dessa morte também é clara e simples. Tão simples como a ânsia de sobreviver.

- Drª. Amani Ballour


Sexta-feira, 18 de Março de 2016.  A União Europeia e a Turquia anunciam um acordo, desde o seu início controverso e eticamente questionável, que resultou no desembolso de 6 mil milhões de euros (metade acordada inicialmente, outros 3 mil milhões injetados mais tarde), em troca da retenção e “acomodação” de todos aqueles que, através da travessia ilegal de fronteiras turcas, fossem apanhados a tentar entrar na Grécia. A 20 de março de 2016, o acordo entraria em vigor, sob a falsa premissa de uma Turquia segura para os migrantes e para todos aqueles em busca de asilo, longe dos seus países incapazes de lhes oferecerem condições de segurança para viver, e onde mais uma vez não seria, nem é, possível encontrá-las.


Sexta-feira, dia 28 de fevereiro de 2020. Em resposta a um ataque do regime sírio (presumivelmente levado a cabo pela Rússia, sua aliada) em Idlib, na Síria- que, no dia anterior, resultara na morte de 33 soldados turcos-, a Europa viu renovadas as ameaças do Governo de Erdogan quanto à abertura de fronteiras: a violação do acordo e o novo sobrecarregamento das linhas gregas, inundadas pelas ondas de milhares de pessoas que, em simultâneo, se reuniriam para as ultrapassar e seguir caminho em busca do sonho acalentado da Europa.


Que distópica esta realidade de obstáculos com que, incessantemente, se deparam estas pessoas, criados por quem mais não deveria fazer senão unir esforços e mobilizar forças e recursos para as receber em condições. Será que foi assim há tanto tempo que se levaram a cabo perseguições e execuções horrendas nesta formidável Europa em que vivemos? Quantos de nós não tiveram de fugir? Quantos de nós não seguiram também viagem em busca de refúgio, de segurança, de novas oportunidades para reconstruir as suas vidas?


Porque um dia teremos sido nós a partir e a deixar tudo para trás. Porque um dia nós podemos ser os outros. Nós, todos. Esquecemo-nos que a história se repete.

Escolhemos não ter memória, ou torna-se difícil recordar?


Pertenço a um povo a quem disseram, nos tempos modernos, nada sobrará de ti, nem mesmo cinzas. Steiner falava do povo judeu. Um povo a quem alguns disseram que a memória das memórias desapareceria, mas a voz de outros nunca deixou desaparecer. Estaremos a dizê-lo de novo? Estaremos a deixar que o digam de novo? Estaremos a deixar que milhares de pessoas o ouçam novamente tão pouco tempo depois? Num grito quase uno de quem está no poder e de quem poder tem sobre isso, que ressoa por todos os cantos dos muros que não cessamos de erguer?


Ruído. Por vezes, parece não existir nada para além do ruído. Uma frequência permanentemente em vibração que ocupa todo e qualquer espaço que encontre por preencher.


Inunda-nos o ruído que, numa época em que abundam os estímulos e a informação, nos priva de conteúdo e profundidade. Tweets, stories, notícias ao segundo, snaps, publicações, comentários, novos comentários, atualizações permanentes. E de quê?


Abunda o ruído... permanentemente o ruído.


Talvez seja uma forma de afastar os nossos medos, de preencher o vazio, de cortar com o silêncio. De fugir de certos pensamentos, de nos iludirmos em relação à nossa própria solidão, em relação a nós próprios. É fácil perder a noção de silêncio, do seu valor, de como é importante para o simples ato de recordar, sem o qual pouco ou nada somos, enquanto indivíduos, enquanto povos ou coletivo.


Neste século, aprendemos que podem tirar-nos tudo: a nossa casa, a nossa família, os nossos meios de subsistência. Somos todos seres errantes, mais ou menos caçados neste mundo. É a história de milhares de pessoas (…) que se estão a tornar «judeus», que se tornam presas ou predadores. O que temos dentro de nós não nos podem tirar.


Perdemos isso, perdemos tudo.


Somos aquilo que recordamos.


Perdemos aquilo que, sobretudo, a memória nos diz sobre nós próprios enquanto indivíduos, enquanto seres humanos constantemente neste jogo, nesta partida, em que nenhum dos lados sai vencedor.  Não se somam pontos, somam-se vencidos, uns pelo que perdem, outros pelo que dos outros tiram, estes mais vencidos que todos.


A Dr.ª Amani Ballour não esquece. Nem Samaher, nem a Drª. Alaa. O Dr. Salim recorda para sempre, tal como todos os que por eles passaram, tal como todos os que com eles nunca se cruzaram, mas em quem o véu de poeira, dor e perda assentou. São memórias de uma guerra que assola meio mundo, onde a história já nos mostrou que podemos estar em qualquer um dos lados. Uma guerra que, tal como o passado, enquanto conservar a sua distância, dificilmente nos tocará verdadeiramente onde dói, num ponto que nos leve a travar a verdadeira batalha que, acima de política, deveria ser humana. A história repete-se. A memória falha, perde importância, afasta-se daquela que é a realidade presente, torna-se distante. Cabe-nos a nós não deixar esquecer a história, não deixar esquecer quem hoje faz parte dela. Não esquecer, recusarmo-nos a esquecer. Recusarmo-nos a que sejam estas as memórias que estamos a criar.


Não nos é pedido nada, exceto uma coisa: que nos lembremos, que mantenhamos a memória viva.


E para recordar é preciso silêncio.


O ruído ensurdece.





(A citação de Amani Ballour foi retirada do filme The Cave, de Feras Fayaad. As citações de George Steiner foram retiradas de uma entrevista em O Belo e a Consolação)

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