Em Frei Sérgio, Tolstoi conta a história de um homem que, apesar de ter consciência dos seus pecados, não se consegue livrar dos mesmos. Frei Sérgio vive num constante dilema entre as suas tentações - a paixão por mulheres e a obsessão pela procura do louvor humano - e a sobriedade que a sua devoção a Deus exige
Crónica de João Moreira da Silva
Estudante de Direito, FDUL
Frei Sérgio é uma obra póstuma de Leo Tolstoi, publicada um ano após a sua morte, em 1911. O livro, com apenas 95 páginas - em nada semelhante a outros longos trabalhos do autor, como Guerra e Paz ou Anna Karenina - relata a história de um aristocrata russo, o Príncipe Estêvão Kasatsky, cujo percurso sinuoso o levou do exército russo para um convento, onde se tornou Frei Sérgio. Antes da fuga para o convento, Kasatsky cancelara o casamento com uma mulher aristocrata na véspera da cerimónia.
No convento, Frei Sérgio procurou adquirir todas as virtudes cristãs que considerava obrigatórias para exercer as suas funções e libertar-se de uma vida passada de pecado. Sempre que surgia uma tentação, em particular uma mulher, repetia para si próprio as palavras de Cristo: Não nos deixes cair em tentação. Ao focar-se na obediência rígida aos dogmas da Igreja e no trabalho, conseguia abstrair-se destas provocações e da sua vida passada como aristocrata e militar.
Apesar de viver esta vida regrada, Frei Sérgio sentia que algo continuava errado em si. Tinha renunciado a quase todas as suas antigas tentações mundanas, mas subsistia um pecado em si: a vaidade. Graças à ajuda de um guia espiritual, Frei Sérgio apercebeu-se que a sua luta contra as tentações se devia ao amor do seu próprio orgulho, e não ao amor a Deus. A vida nos conventos não o tinha purificado totalmente, por isso Frei Sérgio decidiu trocar o convento por uma caverna, onde quis levar uma vida de eremita. Nesta caverna, Frei Sérgio tinha um nicho para a cama, um colchão de palha, uma pequena mesa e uma prateleira com imagens e livros. Nada mais.
No entanto, nem a vida de eremita deu a Frei Sérgio a paz espiritual que ele procurava. A par dos antigos dilemas, o Frei também começou a questionar se esta sua demanda não era, em si, egoísta. Nas suas preces, perguntava constantemente a Deus Qual o motivo de criares toda esta tentação? Não será uma espécie de tentação o meu desejo de abandonar todas as alegrias terrenas? - este era o grande dilema do homem. Por um lado, ambicionava ser santo e um homem superior. Por outro, reconhecia que até essa ambição era fútil.
Um dia, quando uma mulher visitou a sua caverna para o tentar seduzir, Frei Sérgio cortou um dedo da mão para resistir a esta tentação. Tal foi o choque da mulher que, depois desse dia, decidiu entrar também ela num convento. Após protagonizar este episódio caricato , Frei Sérgio começou a tornar-se numa figura popular na região - as pessoas começaram a admirar os alegados poderes do homem. A sua fama aumentava de dia para dia, assim como as pessoas que o visitavam para procurar uma benção, a cura para as suas doenças, ou de pura e simplesmente ver o homem com os seus próprios olhos.
Com a sua crescente popularidade, Frei Sérgio volta ao seu dilema inicial. Tanto sentia alegria com a presença das pessoas e com os louvores que lhe faziam, apelidando-o de “santo” e “curandeiro”, como tinha vontade de fugir daquela vida onde já não servia Deus, mas apenas os homens. Os seus poderes de cura eram publicados nos jornais de toda a Europa. Frei Sérgio tinha cedido à vaidade - Deus não lhe concedera libertação dessa paixão.
Pouco tempo depois de ceder à tentação da vaidade, Frei Sérgio cedeu perante a sua segunda tentação: as mulheres. Uma rapariga procurou-o para ele a curar, acabando por agarrar-lhe a mão e beijá-lo. Todos os anos de resistência e rigidez foram por água abaixo. Frei Sérgio sentiu necessidade de rezar. Mas não havia a quem. Deus não existia, escreveu Tolstoi, para descrever o desamparo do homem. Estava na altura de fugir da vida de santo e voltar ao mundo real.
Após refletir e descansar, Frei Sérgio - que agora tinha voltado a ser Estêvão Kasatsky - sentiu um chamamento de Pashenka, uma mulher que tinha conhecido quando era mais novo. Foi visitá-la, para compreender o que devia fazer. Pashenka estava velha e levava uma vida de serviço ao outro: cuidava da filha e dos cinco netos, enquanto dava aulas de música a filhos de comerciantes da aldeia por alguns trocos, para poder sobreviver. Ao longo dos anos, tinha-se afastado da Igreja. Tinha vergonha de ir à missa com os seus farrapos e faltava-lhe o sentimento religioso, contou ela a Kasatsky. O homem ouviu-a e abandonou a sua casa. Vivi para os homens sob pretexto de viver para Deus, enquanto ela vive para Deus supondo que vive para os homens, concluiu o antigo Frei.
De pouco servia o caminho formal da Igreja para homens que procuram o louvor, pensou Kasatsky: uma boa ação - um copo de água sem ideia de recompensa - vale mais do que todo o benefício que eu imaginei conceder ao povo. Kasatsky tinha dedicado a sua vida a ajudar os outros, mas contava sempre com um sentimento de realização em troca desta ajuda, como quando lhe chamavam “santo” e “curandeiro.” Por sua vez, Pashenka não procurava plateias de homens e mulheres que a aclamavam, limitando-se a ajudar de forma inconsciente aqueles que a rodeavam.
O desejo de servir a Deus de Kasatsky tinha sido ultrapassado pelo desejo do louvor humano. Perante esta realização, o homem abandonou a vida nobre para se tornar peregrino, pedindo esmola de aldeia em aldeia. Com o passar do tempo, Kasatsky conseguiu finalmente abandonar as suas antigas tentações. Quanto menos importância ligava à opinião dos homens tanto mais sentia a presença de Deus dentro de si. Este foi o percurso de Frei Sérgio.
O texto completo de Father Sergius (Leo Tolstoi) pode ser lido aqui: https://www.ccel.org/ccel/tolstoy/sergius.html
留言