de Pedro Teixeira Brites
No passado domingo, tive a magnífica oportunidade de testemunhar a maior humilhação futebolística que o meu clube sofreu frente ao seu maior rival nos últimos 60 anos. Não vou elaborar no teor futebolístico: os maus venceram os bons, a equipa que, na minha infância, me atormentou aqui e ali voltou a fazê-lo, o dia seguinte foi mais cinzento e fiquei com dores de costas. A festa do pré-jogo não se estendeu até ao final do mesmo, as crianças por este país fora ficaram mais tristes, mais birrentas, mais ranhosas. O Porto perdeu e, aos meus castanhos olhos, o mundo ficou um lugar pior.
Perante esta vigorosa verdade, indubitável à minha visão, tive de adotar as minhas mais altas muralhas e mais fortes defesas para aplacar o sofrimento e encontrar um canto quente algures neste triste mundo, para me acolher. Para isso, nada melhor que relativizar o azedume causado pela má prática desportiva dos jogadores que vestem um equipamento com listas azuis e brancas, relembrando outros momentos que me deixam ainda mais azedo e desgostoso.
Embora não seja um exercício fácil, é possível, apenas porque no domingo nem tudo foi uma tragédia (a título pessoal, a nível coletivo, tudo foi uma tragédia). A possibilidade de ir ao estádio onde já vi o Porto ser campeão (pelo ecrã e ao vivo), onde já vi golos decisivos serem marcados nos minutos finais (pelo ecrã e ao vivo), onde já celebrei vitórias de remontada (pelo ecrã e ao vivo) é sempre especial. Enquanto portista, já fui muito feliz no estádio da Luz e, desta vez, tive a oportunidade de facilitar esta experiência (arranjando bilhetes) a duas pessoas.
Peço, por isso, desculpa à minha amiga Carolina e ao Matias – ou talvez deva ser o oposto, visto que a presença de ambos pode ter sido catalisadora de uma corrente de eventos que terminou no flagelo de domingo – e confesso que fiquei tocado depois de ver as suas caras desgostosas no final do jogo. Espero que me perdoem a confissão, mas a Carolina estava mesmo com cara de quem estava pronta para fazer um salto de parapente do 3º anel da Luz, sem o parapente preso a si.
O mundo continuou a girar e as nuvens não ficaram mais espessas, nem impediram mais sol que o costume de chegar ao chão. Por isso, eis três momentos que me causam mais prurido que a derrota de domingo.
Ginásio matinal
Não sou um fanático do ginásio – como, aliás, se nota pelos meus braços finos. Não sou, sequer, altamente cumpridor e regrado. Vou quando posso e tenho mais que uma ínfima vontade. Cedo aos impulsos de ócio que me retêm na cama ou no sofá e me acorrentam à impossibilidade de ir suar para perto de outras pessoas.
Deixando isto assente, eis a minha questão com ir ao ginásio durante a manhã (não a manhã madrugadora, a manhã que começa às nove e termina às onze e pouco). Com o primeiro equipamento do Estoril Praia vestido e uma vontade superlativa de ouvir grunhidos e gemidos de desconhecidos, cheguei ao espaço que me receberia por noventa minutos. Noto, com espanto, que sou a única pessoa da minha idade ali, contrariamente ao habitual. Quarentões, cinquentões, sessentões e seniores são a minha companhia matinal de terça. Por si só, isto parece irrelevante, mas não é.
Para contexto, estou a terminar a minha licenciatura, fazendo duas cadeiras que me faltam, ao mesmo tempo que faço um part-time (chega a ser insultuoso considerar a atividade em questão como sendo um trabalho, mas o contrato e a remuneração teimam em dizer-me o contrário).
Ao chegar a um ginásio recheado de pessoas conhecedoras de música dos anos 80 (até 70…) com mais preocupações relativamente às suas articulações do que em relação à roupa que vestem, fui atingido por uma pequena reflexão: não estudo o suficiente para me considerar um estudante, não trabalho o suficiente para me considerar um trabalhador por conta de outrem e, estudo e trabalho somados, não me ocupam tempo suficiente para me considerar um trabalhador-estudante. Nenhuma destas atividades “sérias” me ocupa tempo suficiente para me considerar mais que um “mini-desempregado”. E este pensamento doeu-me mais que o penálti do Di Maria marcado a 8 minutos do final (8 minutos que poderiam ser usados para ampliar a humilhação já evidente).
Comentadores
Existem os enfermeiros, os professores, os advogados, os vendedores das papelarias, os operários, os padres, os futebolistas – embora alguns não aparentem o dom de, sequer, jogar à bola, quanto mais o de jogar futebol (sim, Gonçalo Borges, nós sabemos a quem me refiro), os padeiros, os picas da CP, os senhores que repõem as vending machines…
Se numa ficha de alunos do 3º ano eu colocar diferentes imagens de diferentes profissões e pedir para indicarem os nomes de cada uma, a maioria dos miúdos será bem-sucedida. Os senhores com o pão na mão são os padeiros. Os de bata, os enfermeiros; o homem sisudo que olha de forma julgadora para todos é o pica da CP; o Sísifo que empurra a pedra até ao cume da montanha é o futebolista (numa clara alusão à incansável tarefa de um certo jogador do Porto de tentar mostrar alguma destreza técnica, quando a bola fere os seus pés, em vão), e por aí em diante.
Quando a turma chega à imagem de um ser humano sabichão, altivo e constantemente certo sobre o rumo do mundo, ninguém sabe o que dizer. Quem é este ser com o dom da sapiência? Que tudo sabe sobre tudo? Neste momento, um ser sabichão entra na sala de aula, com ar altivo e de quem tem a resposta na língua. “São os professores”, diz de forma séria e enfadada. Perante a resposta incorreta, faz-se luz na sala.
Um ser algo absorto da realidade, com ar de que todos lhe devem e ninguém paga, profissional em todas as matérias importantes e perito em fazer preâmbulos vazios? A turma grita em coro: “É um comentador!”.
Brincadeiras à parte, até porque nada tenho contra esta nobre profissão, não tenho nada contra comentadores. Até tenho amigos que são. Tenho sim, urticária com pessoas que são colocadas em prime time ou nos jornais mais lidos, a falarem sobre todo o tipo de temas, sem parecerem ter propriedade para tal. Passo a exemplificar.
Depois da morte de Odair às mãos da Polícia e dos tumultos que surgiram em seu reflexo, por toda a Grande Lisboa, no programa “Expresso da Meia-Noite” são chamadas 4 pessoas para comentar o sucedido: Isaltino Morais e Basílio Horta, dois presidentes de câmara de duas câmaras centrais da Grande Lisboa, e António Brito Guterres, investigador e doutorado em Estudos Urbanos. Para além deste painel de luxo, de pessoas que conhecem a realidade discutida e, em dois dos casos, de pessoas em cargos de poder político, fica um lugar vazio. Este lugar é preenchido por Maria João Marques, “comentadora da SIC” (citando o Expresso).
Que propriedade tem Maria João Marques para ali estar – para além de ter mentido em direto num momento caricato em que, numa conversa acesa com Paulo Baldaia, narra um acontecimento de forma totalmente incorreta e enviesada, enquanto a filmagem do acontecimento em questão passa para todos testemunharmos que a “comentadora” mente – para comentar um acontecimento, aparentemente, totalmente alheio ao seu conhecimento?
A minha dúvida fica esclarecida quando Bernardo Ferrão apresenta o quarto membro do painel: “Deixe-me passar aqui à Maria João Marques, que esta semana tem falado incansavelmente e até de forma, por vezes, polémica…”.
O Expresso e a SIC não têm interesse em terem alguém que saiba do que fala naquela posição. Não querem ter, por exemplo, alguém ligado à polícia para explicar os comunicados aparentemente falaciosos que foram feitos sobre o incidente. Não é sobre a mensagem, é sobre o mensageiro.
Alguém com conhecimento no tema em questão foi preterido face a alguém que tem falado de forma “polémica”. Em última análise, o interesse é ter alguém polémico a falar, que escandalize e exclame frases (mesmo que vazias) para irem parar às redes sociais. Isto não é exclusivo da SIC. Acontece sempre que se opta por colocar em posição de fala alguém que não tem conhecimentos para o fazer.
E quando damos por nós, temos comentadores que viram eurodeputados e reciclam teorias da conspiração em direto, temos uma anti-vaxxer que afirmou que os testes covid davam “falsos negativos em 95% dos casos” a comentar política nacional à tarde, temos jornalistas ambientais a comentar conflitos bélicos (por proximidade conjugal ao conflito?).
Tudo isto me dói mais que olhar para o banco do Porto e ver lá o Vasco Sousa a não ter minutos nenhuns.
Wokismo
Uma certa direita portuguesa (da liberal à conservadora e até à extrema) tem estima pela constante importação de problemáticas do outro lado do Atlântico para o nosso pequeno país.
O fenómeno mais recente é a constante luta contra o espantalho do “wokismo”. Miguel Morgado, João Cotrim, o deputado João Pinho de Almeida, Gonçalo Levy Cordeiro, André Ventura, Pedro Frazão, Rita Matias… a lista de personalidades da direita constantemente a balbuciar este estrangeirismo não deixa de ser grande e curiosa. Esta expressão em inglês veio substituir o já gasto e demasiado português “Politicamente Correto” e, como crianças com um brinquedo novo, parte da direita tem-se entretido sem fim nesta nova palavra importada dos EUA.
O caso que me fez despertar ainda mais para a forma como esta palavra era recorrentemente usada, e mal usada, foi a vitória de Trump.
Perante a vitória de um criminoso condenado, um ser machista com declarações extremamente deploráveis, alegado incitador a um golpe de estado e cuja missão é colocar pessoas como R.F. Kennedy (que afirmou que a COVID-19 foi “geneticamente trabalhada para poupar judeus e chineses” e que vacinas causam autismo) em cargos de poder (no caso do negacionista, em cargos relacionados com a saúde), a turma conservadora e liberal que não apoiou Trump não reagiu com preocupação.
A preocupação foi outra.
Cotrim, após a derrota de Kamala, não mencionou nada do que referi face a Trump. Falou do wokismo, da derrota da esquerda americana e (veja-se bem) da europeia(?) e falou do coletivismo dos democratas (coletivista, isso mesmo). Levy, à boleia de RAP, refere que a “agenda woke estupidamente absurda que afugenta eleitores” e responsável pelo abalo americano se reflete no facto de Kamala chamar à comunidade latina de “Latinx” para não ser ofensivo. Na realidade, esta expressão foi utilizada apenas e só uma vez, em 2020.
Miguel Morgado afirma que a derrota de Kamala “é a derrota do wokismo. As pessoas fartaram-se de falsos problemas culturais”.
Poderia aqui continuar com exemplos de como existe todo um conjunto de pessoas que sente a sua análise validada por utilizar termos que considera corriqueiros. Quando a análise mais profunda que um campo político faz resulta num “a Kamala perdeu porque é woke”, então se calhar a profundidade da análise é equivalente à de um charco. Da mesma forma que não concordo com a análise de que Kamala perdeu por ser mulher, não me parece que uma certa direita esteja correta quando baseia toda a sua celeuma e consternação no “wokismo”.
Para terminar esta demasiada longa crónica, queria apenas deixar um último e rápido exemplo. O deputado conservador João Pinho de Almeida mostrou consternação face a uma questão relacionada com a área da saúde no nosso país. Não me espantou, visto que já morreram 11 pessoas face aos atrasos de atendimento do INEM.
No entanto, quando vou ver a opinião do deputado, percebo que o tema abordado é sobejamente mais importante: as cores dos boletins de saúde, que passariam a ser amarelas, independentemente do género da criança.
Em relação às 11 mortes, um silêncio que faz doer qualquer ouvido.
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