As eleições presidenciais chilenas, disputadas no último mês, foram muito provavelmente das mais importantes dos últimos anos, pelo menos para a América Latina, tal como será tudo o que decorrer da vitória de Gabriel Boric.
de Vasco Castro Pereira
O candidato da esquerda unida derrotou José Antonio Kast, candidato de extrema-direita, saudosista da junta militar de Pinochet e apoiado pela direita neoliberal. Apesar da vitória não ter sido particularmente contundente, vem confirmar a senda de viragem progressista da sociedade civil chilena e abrir um horizonte de esperança para o povo e o país.
O Chile encontrava-se, e ainda se encontra, numa posição bastante complexa do ponto de vista “neutro” e que divide posições quer na análise quer na própria Sociedade Civil. Como sabemos, o país viveu sob uma ditadura militar, liderada por Augusto Pinochet, entre 1973 e 1990, e que serviu também como um autêntico laboratório para as experiências económicas no campo da ortodoxia liberal, colocadas em prática pelos chamados Chicago Boys – economistas chilenos formados na Escola de Chicago por Milton Friedman – e defendidas acerrimamente por pensadores como Friedrich Hayek ou líderes como Margaret Thatcher.
A herança do regime e das suas políticas mantém-se na Constituição de 1980 que, apesar de ter sofrido alterações em democracia, ainda é aquela que prevalece. Por um lado, podemos registar um crescimento económico quase sem paralelo em relação aos vizinhos latino-americanos, passando de um (crescimento do) PIB abaixo da média sul-americana para valores bem acima da média em poucos anos.
Por outro lado, é factual que a Constituição preconiza um Estado social mínimo que não oferece saúde, educação ou ação social públicas, delegando isso para o setor privado, algo que é visto como um retrocesso civilizacional comparando com qualquer país minimamente desenvolvido – nomeadamente na Europa – onde, seja o Estado mais ou menos forte em apoios, há um Estado claramente desenvolvido.
Com a queda definitiva da ditadura militar e a implementação de uma democracia representativa tivemos, por um lado, o desenvolvimento da sociedade civil chilena a vários níveis, como seria de esperar tendo em conta que voltou a haver liberdade de pensamento, de expressão e de associação, para além de duas revisões constitucionais que liberalizaram consideravelmente o texto original – em 1989, deixou de haver “limitação do pluralismo político” contra, por exemplo, o marxismo e, em 2005, acabou-se com os “senadores nomeados pelas Forças Armadas”.
No entanto, ao mesmo tempo, a Constituição mudou apenas e só em aspetos ligados ao regime político. O modelo económico é o mesmo, a noção de “poder popular” tem limitações e a própria sociedade chilena não legitima inteiramente um texto conotado com a ditadura. E este somatório de um desenvolvimento acelerado da sociedade civil com uma Constituição retrógrada, que salvaguarda um modelo económico quase distópico e entraves à democracia participativa, levou a uma contradição que se revelou catalisadora de uma grande mudança social e política em curso.
Em Outubro de 2020, o primeiro grande passo foi dado: após ondas de protestos, convocou-se um referendo para se votar a favor ou contra uma nova Constituição. Com 78% dos votos, o povo chileno mostrou-se favorável a um novo texto e, em 2021, elegeu uma Assembleia Constituinte que será responsável pela elaboração do mesmo, sendo ainda necessário que o resultado final seja aprovado, provavelmente num novo referendo.
Em maio de 2021, os chilenos elegeram a Assembleia Constituinte, que é dominada por independentes e pela esquerda anticapitalista, castigando os “partidos tradicionais” e os representantes do modelo económico vigente.
O avanço seguinte seria, juntamente com isto, eleger um presidente nos mesmos moldes. Ou seja, alguém popular, fruto desse desenvolvimento da sociedade civil e com capacidade disruptiva. Até à data, e desde 1990, o Chile teve dois presidentes democratas-cristãos, um presidente de centro-esquerda e de seguida teve dois mandatos de Michelle Bachelet, também de centro-esquerda, e de Sebastián Piñera, liberal-conservador. Todos os mencionados acabaram por ser engolidos pela ideologia de estado mínimo plasmada na Constituição e por terem pouca ou nenhuma capacidade disruptiva. Após os protestos de 2019 e a grande vitória popular em 2020, parecia a grande oportunidade para eleger alguém diferente.
Aqui surgiu Gabriel Boric, um jovem de apenas 35 anos, que se notabilizou enquanto dirigente estudantil, incluindo em várias ações nacionais de luta e reivindicação, e alguém que reúne consenso entre os vários setores da esquerda progressista, ecologista e libertária.
Nas primárias da esquerda, surpreendeu e venceu o altamente favorito Daniel Jadue, do Partido Comunista e com bastante mais experiência política até enquanto alcalde, reunindo de imediato, no entanto, o apoio dos comunistas.
Por outro lado, uma grande fração da sociedade civil chilena não viu, e não vê ainda, esta mudança com bons olhos, acreditando nos sucessos económicos do modelo económico vigente e, em alguns casos, tendo até saudosismo da Junta Militar de Pinochet, e daí nasceu a candidatura de José Antonio Kast, apoiante das políticas neoliberais no plano económico e admirador assumido de Pinochet, Donald Trump e Jair Bolsonaro.
Boric e Kast passaram à segunda volta e dividiram a sociedade civil e a política do país em dois. Os movimentos progressistas e os setores mais preocupados com questões sociais, da esquerda ao centro-direita, apoiaram Boric. Já a extrema-direita, o grande capital e os neoliberais mais fervorosos apoiaram Kast, descrevendo-o em muitos casos como “um mal menor contra os perigos de uma economia socialista que transformaria o país numa Venezuela”. No final, Boric foi eleito com 56% dos votos, marcando aquele que foi provavelmente o maior triunfo das forças progressistas da sociedade chilena até hoje.
O jovem presidente eleito tem um desafio enorme pela frente. Num país e numa sociedade fraturados, terá de justificar a confiança do seu eleitorado, cumprindo as metas ambiciosas de reestruturação da economia e da sociedade a que se propôs e, ao mesmo tempo, convencer os mais céticos de que é possível manter bons resultados com um modelo económico assente em mais redistribuição, igualdade e justiça social e ambiental, sobretudo numa região onde são inevitáveis as comparações com outras experiências de esquerda que não correram da melhor forma.
Ao mesmo tempo, ainda terá de esperar pelo que sairá da Assembleia Constituinte e pela aprovação da nova Constituição ou, pelo contrário, e como os antecessores, ter mais um adversário na Constituição de 1980. Mas o facto é que, para já, tem o povo com ele. E, como o próprio Boric garantiu no discurso de vitória, a sua primeira tarefa será precisamente ouvir o seu povo todos os dias, procurando uni-lo e garantir coesão social. E tem outra grande vantagem: é alguém que pertence à grande fatia da sociedade civil que procura mudança. E esta gente tem algo pelo qual vale a pena lutar.
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