A mim, além de ser sempre um deleite tomar contacto com um clássico da literatura sul-americana, “Alvo noturno” fez-me voltar às pampas, ao dia em que resolvi deixar a cidade, rumo à liberdade consagrada em planura.
Crónica de Vicente Goes
Estudante de Economia na Universidade Nova SBE
Perante estes tempos de incerteza, impotência e isolamento, ouvi um amigo perguntar a outro para que serve nas nossas vidas a criação de um imaginário? Ao que outro respondeu que valeria a pena “recolher aquilo que me liga e me comove inesperadamente”.
Outro dizia-me que leu num livro de Camus que para um homem confinado a um espaço restrito até ao fim da sua vida bastava ter tido um dia de contacto livre com o mundo para poder viver, com sentido e consciência, o resto dos seus dias.
Rilke nas suas Cartas a um jovem poeta advoga que a memória e a imaginação são faculdades indispensáveis ao processo de escrita de qualquer poeta, um vez que são fontes riquíssimas de inspiração para momentos menos férteis.
Algo de semelhante se passa connosco nos dias que correm. Em quarentena é comum sentirmo-nos limitados na nossa liberdade e enfraquecidos no potencial de fruição do mundo e da vida. Assim estava eu ultimamente, enquanto lia um romance de 2011 chamado “Alvo noturno”, de Ricardo Piglia, autor argentino galardoado.
Muitas vezes, em lugares diferentes, ao longo dos anos, Emilio Renzi tinha-se deixado levar pela lembrança de Luca Belladona, e recordava-o sempre como alguém que tinha tido a coragem de estar à altura dos seus sonhos
Alvo nocturno, Ricardo Piglia
O livro retrata um mistério criminal numa vila aparentemente pacata, na ruralidade da província de Buenos Aires, nos tempos da ditadura militar argentina (anos 70). Importa referir que a cidade de Buenos Aires – onde tive a sorte de viver por 4 meses - é um tesouro: uma monumental capital europeia, animada por um clima cultural absolutamente latino e efervescente. Mas a Argentina é um mundo por descobrir que vai muito além da capital: desde as terras do fim do mundo, passando pelas vinhas no sopé dos Andes, às cataratas do Iguaçu, terra de missões, bem como a outras pérolas mais perto da metrópole federal.
Ao redor de Buenos Aires, algo de não menos valioso ganha vida em extensão e planura: as pampas. Terrenos verdes e planos a perder de vista até ao horizonte, que cobrem áreas impressionantes de terra, habitadas por gaúchos e cavalos que cavalgam livremente por esse seu mundo. Terrenos cantados nos maiores livros argentinos, pelos maiores cantores de tango, e pelos maiores poetas. A própria capital, sem a urbanização em altura e os monumentos erigidos, seria “pampa à beira mar plantada”. Talvez daí venha o seu encanto.
Piglia descreve magistralmente – numa ficção assustadoramente real e viva - a vida numa vila da pampa argentina: os seus vícios, as suas particularidades, as suas tradições, as saudades de Perón, um crime por resolver, os interesses movidos, as famílias destruturadas, as distâncias várias entre a capital e a ruralidade, a desigual distribuição da terra e o desequilíbrio nas relações sociais que daí advém.
A mim, além de ser sempre um deleite tomar contacto com um clássico da literatura sul-americana, Alvo noturno fez-me voltar às pampas, ao dia em que resolvi deixar a cidade, rumo à liberdade consagrada em planura. Voltar àquele final de tarde misterioso, em que, por entre o pôr-do-sol e a ameaça carregada de uma trovoada, cavalgámos – eu e San Martín, um simpático gaúcho – rumo ao horizonte. Aos amplos terrenos que cruzámos, às criações de cavalos, éguas e potros nas estâncias. Ao vento que cortávamos a cavalo e que abanava ferozmente tantos e tão sós arvoredos. À sensação de estar só e por isso ser nada diante de tudo. Ao que vi e senti perante o mundo, assim aberto, de uma ponta à outra.
Tudo isto num quarto, com um livro na mão e a partir de uma história. Tudo isto recorrendo à memória e à imaginação, e construindo a partir do que lia. Deixemo-nos maravilhar, vivamos atentos e disponíveis para que, recordando, possamos viver ainda melhor.
Renzi viajava olhando para o campo, a quietude da planura, as últimas casas, os paisanos a cavalo, a passo largo ao lado do comboio; umas crianças descalças que corriam pelo terrapleno e saudavam com gestos obscenos.
Alvo nocturno, Ricardo Piglia
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