Sou um acérrimo apologista de se falar menos de arbitragem e mais de futebol, mas temo que enquanto não forem feitas reformas profundas no setor, isto se torne tão improvável quanto a Cimeira dos G18 levar a resultados práticos (e, mais do que isso, contínuos).
Texto de Miguel Pereira Dâmaso
Na semana passada, 17 representantes dos clubes que, na próxima época, vão disputar a Liga Portugal Bwin (mais o Rio Ave, relegado ontem para a 2ª Liga) decidiram dar um murro na mesa, afastar-se da Liga e da FPF e passar a lutar sem intermediários pela defesa do futebol português (e dos seus interesses), assumindo que, de agora em diante, o diálogo se dará entre os clubes e “(…) os principais stakeholders do setor e, de forma direta, com o Governo nos aspetos a ele respeitantes”.
Infelizmente, receio que todo o entusiasmo em torno de um qualquer avanço no futebol português esbarrará num ponto que não é abordado uma única vez no comunicado oficial que saiu do almoço na Mealhada, e que é, manifestamente, o tópico mais discutido nas redes socias, que mais tinta faz correr nos jornais e que mais tem dividido clubes em Portugal. Senhoras e Senhores: a arbitragem.
Nas últimas épocas temos assistido a comportamentos lamentáveis por parte de jogadores, treinadores, árbitros, adeptos e dirigentes.
Sem querer apontar o dedo ao treinador A, ao jogador B ou ao árbitro C, enquanto nada for feito a este respeito, será muito difícil que esta “união repentina” dê frutos.
O futebol português sofre de uma doença crónica. Todavia, da mesma forma que em política não se discute a dívida pública, também no desporto rei – não interessa a nenhum dos intervenientes sentar-se à mesa a discutir mudanças significativas relativamente à arbitragem, pois é esta que permite continuar a desculpar objetivos não alcançados e erros constantes de um lado e do outro.
No entanto, a doença que abala o futebol português não se chama “arbitragem”. Chama-se, sim, “impunidade”.
Esta impunidade de que falo diz, antes de mais, respeito à arbitragem (árbitros, APAF e Liga), mas também a todos os outros intervenientes do futebol português. Chegámos a um ponto onde um treinador que perde dois jogos é despedido, um jogador que falha três golos é relegado para o banco, um presidente que “apenas” se apura para a Liga dos Campeões é assobiado, mas um árbitro que, devido a uma mão cheia de más decisões, tem influência direta num resultado, na semana seguinte, estará a apitar noutro campo e na época subsequente continuará na Primeira Liga. Pior. Chegámos ao ridículo (e admito que este problema não é exclusivo do futebol português) de serem aplicadas consequências mais severas a alguém que critique publicamente um árbitro que errou, do que ao próprio árbitro.
“Errar é humano”. Por mais VARs que existam, o futebol é um desporto de contacto e, como todos os jogos que envolvam movimento, está dependente de juízos – estes vão agradar uns e desagradar outros – e se no final da época 2021/ 2022 nenhum clube reclamar um único erro de arbitragem, algo estará errado.
No mês passado festejámos o 47º aniversário do 25 de Abril, com este ganhámos, pelo menos em teoria, liberdade de ser, fazer, expressar, opinar e errar. Contudo, de mão dada com a liberdade, veio também a sua melhor amiga: a responsabilidade. Da mesma forma que os árbitros têm liberdade para errar, também os clubes deveriam ter liberdade para criticar, ambos conscientes de que as suas ações têm consequências.
E é isto que não acontece. O número reduzido de árbitros (em grande medida devido à “associação de classe” em que a APAF se tornou, burocratizando brutalmente a adesão ao meio) impede um escrutínio realmente imparcial e uma verdadeira avaliação qualitativa, com consequências práticas, do seu desempenho.
Mas a responsabilidade dos clubes e da Liga Portuguesa de Futebol não fica atrás. O comportamento de dirigentes e treinadores, preocupando-se mais em criticar árbitros – do que em fazer valer os seus orçamentos “pornográficos” – faz com que cada vez menos pessoas queiram seguir o caminho da arbitragem. Não é admissível que, no fim de cada jogo, sempre que um resultado não agrada a uma equipa, esta se reúna à volta do árbitro a pedir justificações ou que treinadores se envolvam em “lutas de galos”, boicotando por completo o espetáculo.
Mais do que vir defender árbitros quando estes são criticados, a Liga deve ter mão pesada neste tipo de situações, que mancham a imagem do futebol português.
O futebol português tem em mãos uma situação bastante complicada: romper com este ciclo vicioso. Pois se apenas uma responsabilização da arbitragem levará a uma mudança de atitude dos clubes, somente uma mudança de atitude dos clubes levará a uma responsabilização dos árbitros, que apesar de fundamentais para a prática do desporto rei, continuam a ser tão desvalorizados.
Sou um acérrimo apologista de se falar menos de arbitragem e mais de futebol, mas temo que enquanto não forem feitas reformas profundas no setor, isto se torne tão improvável quanto a Cimeira dos G18 levar a resultados práticos (e, mais do que isso, contínuos). É preciso uma mudança de comportamento radical de todos os intervenientes. Os clubes preocuparem-se mais em jogar futebol e uma Liga muito mais imparcial e justa, que admita que os “seus” podem errar, da mesma forma que pune com mão pesada quem deve ser punido.
Caso contrário, toda esta vontade de avançar em prol do futebol português não resistirá ao primeiro penalti mal assinalado.
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