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Isto é a gozar com quem emigra

As eleições legislativas nos círculos da emigração (Europa e Fora da Europa), podiam ser um nobre exemplo de como todos os cidadãos têm igual acesso ao sufrágio de forma exemplar – independentemente do sítio em que vivam. Em vez disso, acabam por ser um triste espetáculo de desrespeito para os eleitores da diáspora. Estes portugueses, que têm o mesmo direito ao voto que todos os outros que residem em Portugal, têm de dobrar o cabo das tormentas sempre que são chamados a votar.

de Enzo Santos


As eleições nos círculos da emigração têm dado muito que falar, mas não pelos melhores motivos. Já em 2019 foram anulados milhares de votos por virem sem cópia do documento de identificação (não é de agora que esta questão levanta ondas no debate publico). Aqui chegados, e sendo o problema conhecido, um novo episódio de “Isto é a Gozar com Quem Vota” levou a que mais de 150 mil votos da emigração acabassem anulados – muitos deles válidos – e adiou por mais de um mês a tomada de posse do novo Governo.



Há uma condição comum que parece afetar a classe política portuguesa e muito contribui para este fenómeno. Paira em Portugal uma miopia política que impede que adversidades que já são conhecidas, assim como as suas causas, sejam resolvidas em tempo útil e antes de se tornarem em grandes… (como se diz em bom português) imbróglios.

Ano após ano, eleição após eleição, os portugueses da diáspora enfrentam um verdadeiro percurso de obstáculos para conseguirem votar – arriscando ainda que, feitas as contas, o seu voto acabe no caixote de lixo. Há anos que sabemos que…



O modo de votar não é uniforme entre eleições. Podem ser candidatos às eleições autárquicas mas a lei impede-os de votar. Os postos consulares e embaixadas por esse mundo fora não primam pelo melhor funcionamento. São esquecidos pelos candidatos e dirigentes partidários, que fazem campanha apenas nos grandes centros urbanos. Se tiverem o azar de morar numa cidade sem consulado ou embaixada, têm de percorrer quilómetros para conseguirem votar. Os prazos de inscrição para o voto via postal são apertados e a sua divulgação não é a mais eficaz. A comunicação acerca das eleições parece não fluir e muitos emigrantes não ficam devidamente esclarecidos. Há muitos problemas com a atualização de moradas. Centenas de boletins de voto, senão milhares, não chegam às residências dos eleitores. Muitos não recebem a notificação para levantar o seu boletim nos correios. Centenas de boletins demoram muito tempo a chegar e muitos emigrantes ficam sem poder votar devido aos prazos para devolver os envelopes. A lista continua… Tudo isto para, no final, milhares de votos acabarem anulados. Isto é (mesmo) a gozar com quem vota.



Recordemos a polémica


Nas eleições legislativas de 30 de janeiro, dos 195 mil votos recebidos no círculo da Europa, foram anulados cerca de 157 mil votos, o equivalente a 80%. Embora em muitos países não seja permitido tirar cópias do documento de identificação, a lei eleitoral portuguesa é clara: é considerado como voto nulo aquele que não venha com uma cópia do documento de identificação. Contudo, de eleição para eleição, são anulados milhares de votos por não cumprirem esta exigência. Ainda, muitos emigrantes contestam este requisito e queixam-se da sua ilegalidade. Há quem chegue a escrever estes protestos nos próprios envelopes.

Durante a contagem dos votos nas eleições de 30 de janeiro, um duplo critério usado pelas mesas levou a que o Tribunal Constitucional determinasse a repetição das eleições no círculo da Europa. Enquanto algumas mesas cumpriram a lei, outras contaram como válidos todos os votos: viessem ou não com a cópia do documento de identificação. Serão incompetentes estas mesas? Não. Numa reunião entre os partidos, que teve lugar a 18 de janeiro, ficou decidido por unanimidade que seriam aceites todos os votos (uma decisão sem peso legal, é certo). No entanto, o PSD voltou atrás e contestou os votos durante a contagem.



O resultado: como todos os votos já se encontravam misturados dentro das urnas, e era impossível distinguir aqueles que tinham sido enviados com o documento de identificação, foram praticamente todos anulados – muitos deles eram válidos e acabaram no caixote do lixo devido a esta confusão. No final, seguiu-se o típico “passa culpas” partidário e as eleições foram repetidas na Europa. Conhecidos os resultados, o PSD acabou “castigado” e o PS levou os dois deputados desse círculo, que é historicamente disputado entre os dois maiores partidos (um deputado para cada). Mesmo sabendo que os socialistas já tinham uma maioria absoluta, os eleitores da Europa decidiram reforça-la.



Alternativas, procuram-se


Não é a primeira vez que são anulados milhares de votos de emigrantes por não serem enviados com a cópia do documento de identificação. Face a este problema, impõe-se a necessidade de pensar noutras formas de garantir a segurança e autenticidade do voto. Em 2019, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) tinha dito que a anexação do documento era uma “garantia” adicional, posição que acabou por emendar mas induziu em erro muitas mesas. Uma melhor atuação deste órgão também podia ter ajudado a evitar este fatídico episódio.



Os representantes das comunidades portuguesas já apresentaram várias propostas para facilitar a vida a quem vota no estrangeiro, entre elas o uso do voto eletrónico. Uma coisa é certa, se não aceitaríamos que situações como esta se passassem em território nacional, porque é que aceitamos que aconteça nos círculos da emigração? O direito a votar e o respeito pelo voto são valores imutáveis. Há que pensar em alternativas.



Fica para outra crónica o facto de cerca de 1,5 milhões de eleitores inscritos nos dois círculos da emigração (Europa e Fora da Europa), elegerem apenas 4 deputados entre si (2 pelo círculo da Europa, 2 pelo círculo Fora da Europa). Cada círculo elege o mesmo número de deputados que o círculo de Portalegre, no qual estavam inscritos apenas 94 mil eleitores nas últimas legislativas.



A festa de democracia não existe nas eleições do círculo da Europa e Fora da Europa. São problemas que estão longe, não se passam em território nacional e, por isso, vão merecendo o desleixo contínuo da classe política. Esperemos que durante a legislatura que agora arranca, estes problemas mereçam uma melhor consideração por parte da nossa classe política. Por agora, ficam registados os pedidos de desculpa endereçados a estes eleitores. Esperemos que não tenham sido em vão.

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