A cultura é hoje mais do que nunca acessível a um grande espectro da sociedade, apesar de se encontrar, em certa medida, em declínio e deterioração. Isto porque a arte serve hoje os propósitos da publicidade, com a finalidade quase exclusiva de vender.
Crónica de Inês Moreira
Estudante de Medicina, NOVA Medical School
Sentada no jardim interior do Bakery Lounge, bebo o meu café ao som tímido de Nina Simone, e penso, depois de terminar o livro “Modos de Ver” de John Berger, no poder dos sentidos. Nada de novo, porém, deixo-me deliciar pela beleza deste jardim, pela música que ecoa de fundo, pelo trago de café que ainda resta, e apercebo-me da influência que tudo isto exerce nas minhas emoções, neste momento positivas. É precisamente esta influência poderosa, contudo discreta, que John Berger expõe na reflexão que desenvolve relativamente às imagens e ao poder/lugar/significado que adquirem ao longo dos tempos.
Ver vem antes das palavras. Mesmo antes de saber falar, a criança olha e reconhece. Mas há outro sentido em que o ver vem antes das palavras. Trata-se do ver que estabelece o nosso lugar no mundo envolvente. Explicamos o mundo recorrendo a palavras, mas estas nunca poderão apagar o facto de estarmos rodeado por ele.
John Berger, crítico de arte, romancista, pintor e escritor inglês, dedicou o seu trabalho, ao longo de muitas décadas, a desenvolver teorias que, excluindo associações formais, estilísticas ou semiópticas, se prendiam nos acontecimentos que se dão ao redor das imagens, como vivências dos artistas, dos compradores ou observadores de todos os tipos. Não considera que as imagens suponham um fim, mas que se ligam constantemente ao mundo e ao que nele muda. O conhecimento que as imagens têm dos humanos, e não apenas dos que nelas estão retratados, mas igualmente dos que se encontram do lado de cá, traça a linha imaginária em Modos de Ver.
Neste livro, somos confrontados com cinco séculos de transformação imagética, começando pelo período em que a pintura a óleo se impõe fundamental no mercado e enche as salas burguesas do mundo ocidental, até aos dias de hoje, em que as imagens passaram a olhar-nos sem que remetessem para uma memória ou lugar específicos.
Berger abre as galerias de arte ao espaço expositivo que lhes é alheio, mostrando-nos tudo o que é externo e hoje sonorizado pela publicidade e os seus produtos. As obras de arte, que costumavam encontrar-se encerradas em espaços de grande autoridade, como Igrejas e palácios imponentes, continham não só o poder da própria imagem como eram o derradeiro símbolo da grandeza circundante. A singularidade de cada pintura foi em tempos parte do que era único em cada lugar onde ela residisse. Nunca poderia ser vista em dois lugares ao mesmo tempo. Hoje, a Mona Lisa fugiu do Louvre e multiplicou-se em t-shirts nas lojas de trezentos, ou descansa, discreta e degradante, na parede de um restaurante italiano qualquer de subúrbio, em prol de uma sociedade de consumo.
Mesmo perante a verdadeira “Mona Lisa”, confrontamo-nos com um cenário caricato composto por dezenas de braços no ar na procura desmesurada da fotografia perfeita. Poucos são os verdadeiros contempladores. No final do dia, o produto é uma imagem adormecida na galeria do telemóvel muitas vezes pior à que teríamos a uma distância de um clique na Internet. Mas não interessa, porque o significado desviou-se da pintura e veio recair na nossa própria imagem, numa atualidade que fomenta o culto ao narcisismo através das redes sociais.
Enquanto a qualidade instantaneamente reconhecível da arte contemporânea tranquiliza os colecionadores – e consequentemente aumenta o valor das peças – outras obras são diminuídas pela sua reprodutibilidade, como é o excelente exemplo da Mona Lisa.
Contudo, a cultura é hoje mais do que nunca acessível a um grande espectro da sociedade, apesar de se encontrar, em certa medida, em declínio e deterioração. Isto porque a arte serve hoje os propósitos da publicidade, com a finalidade quase exclusiva de vender. Através das imagens, a publicidade difunde a confiança na sociedade em si própria, alienando de outras importâncias fundamentais.
A publicidade transforma o consumo num substituto de democracia. Escolher o que se come (ou se veste ou se conduz) toma o lugar das escolhas políticas significativas. (...) colabora no encobrimento e age como compensação por tudo o que não é democrático na sociedade. E também mascara o que se passa no resto do mundo. (...) O mundo inteiro torna-se um cenário preparado para o cumprimento da promessa publicitária de uma boa vida. O mundo sorri-nos. Oferece-se a nós.”
No nosso quotidiano, somos assolados por centenas de imagens publicitárias, em cada esquina, em cada rua, em qualquer lugar. Nenhum outro tipo de imagem nos encontra tão facilmente e tão frequentemente. Somos a primeira sociedade de sempre a acolher uma tão vasta concentração de imagens e densidade de mensagens visuais. Paradoxalmente, talvez nunca tenhamos olhado tão pouco, visto tão pouco, como nos dias de hoje, em que praticamente só basta sermos vistos, mesmo que pelo centésimo de segundo de um like e um scroll no Instagram.
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