Por isto, a Superliga é uma facada demasiado dolorosa naqueles que acreditam no futebol como um dos mais profícuos elevadores sociais do nosso mundo. As competições europeias foram, desde a sua criação nos anos 50, o espaço ideal para a quebra de barreiras e a construção de pontes entre os vários países
Texto de Duarte Chastre
Estudante de Direito
Falar de romance, de histórias de amor e de contos de fadas não é propriedade exclusiva da literatura, do cinema, do teatro ou de muitas mais formas de arte que se possam pensar. O futebol é também uma arte, é a arte do povo, a alegria da arraia miúda, como dizem os brasileiros.
O futebol, inúmeras vezes deixado de lado pelos intelectuais, visto injustamente como refúgio daqueles a quem se gosta de chamar de inferiores, é, até hoje, uma das maiores formas conhecidas de aproximação das classes sociais, do contacto entre o interior e as grandes cidades, do clube humilde de bairro e do gigante destemido com um mar de adeptos ou de um operário industrial com um gestor de um banco. É essa a essência do jogo.
A matriz fundadora do desporto-rei está precisamente na disputa do jogo pelo jogo, sabendo que no momento do apito do árbitro, nada mais interessa, tudo pode acontecer. É isso que nos faz apaixonar irracionalmente pelo futebol. Será sempre o golo no último minuto e não a marca que patrocina o estádio do nosso clube. Será eternamente o convívio antes do jogo e não os milhões das transmissões televisivas.
A Superliga Europeia é a expressão máxima da antítese dos valores do futebol. A ideia peregrina de 12 clubes que ousam deitar abaixo todas as fundações mais seguras de um desporto que arrasta multidões há mais de um século.
Os clubes, instituições que são sustentadas pela existência de sócios e adeptos, esquecem-se que são estes a razão da sua existência. Bem sei que o futebol (para muita pena minha e dos românticos) se transformou no já tão comum falado “negócio” contra o qual as claques cantam em tom de contestação e é inevitável entender e aceitar que as circunstâncias de um mundo globalizado implicam a quantidade de capital que é gerada pelo fenómeno, mas tem de existir um limite.
O limite é o sonho irreal de criança. É saber que o clube da vila do Alentejo, onde nasceu a minha avó, se vencer todos os jogos nos próximos 5 anos pode ser campeão europeu. Este é o meu futebol. É o lugar do Nottingham Forrest do mítico Brian Clough que subiu à então First Division em Inglaterra na época de 1976/77, sagrando-se campeão inglês na temporada seguinte. Ao levantar o caneco, apurou-se para a Taça dos Clubes Campeões Europeus, a prova rainha e a menina de ouro do futebol europeu. Destemidos, cheios de coragem e liderados por um homem cheio de convicções alcançou a glória europeia por dois anos consecutivos, em 1979 e 1980.
Por isto, a Superliga é uma facada demasiado dolorosa naqueles que acreditam no futebol como um dos mais profícuos elevadores sociais do nosso mundo. As competições europeias foram, desde a sua criação nos anos 50, o espaço ideal para a quebra de barreiras e a construção de pontes entre os vários países, representados pelas suas equipas e com a nobre vontade de se superiorizar dentro do campo. O embate entre clubes do Ocidente e de Leste, quebrando a Cortina de Ferro através da paixão de um espetáculo que move multidões. O agricultor na Roménia, adepto do Steaua de Bucareste, que esquece a dureza do trabalho numa tarde solarenga de Maio para preparar a final da Taça dos Campeões Europeus frente ao todo poderoso Barcelona. O CEO de uma consultora em Itália, que esquece os seus problemas durante uma hora e meia e grita para ver o Nápoles do seu ídolo Maradona vencer os alemães do Estugarda e conquiste a Taça UEFA, em 1989.
Ao criar uma liga exclusiva, onde os fundadores possuem lugar cativo sem nada ter de fazer para entrar, está-se silenciosamente a matar o futebol. A ir para a frente, a Superliga será o porta-estandarte de um egoísmo que ultrapassa fronteiras. Neste mundo de putativa cooperação e internacionalismo, já não há lugar para os românticos.
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