Só podemos adivinhar quantos indivíduos como Kafka andaram e continuam a andar nesta terra desligados ou restritos de ver quem são ou poderiam ser. Quantos Kafkas viveram e morreram sem nunca terem partilhado a sua voz com o mundo, potencialmente mudando-o?
Crónica de Afonso Abecasis Gomes
Every revolution evaporates and leaves behind only the slime of a new bureaucracy
- Franz Kafka
Franz Kafka - uma das maiores figuras literárias da História recente, conhecido pelo seu estilo único de escrita desorientadora e surreal. Um estilo tão particular que tudo o que a ele se assemelha passou a ser referido como kafkiano.
O que é que torna algo kafkiano? Perceber o seu significado é, no fundo, perceber a sua própria vida.
Kafka nasceu em Praga em 1883, filho de Herman e Julie. O seu pai era um empresário de sucesso que conseguira erguer-se da classe operária e tornar-se um membro da classe média. Herman eventualmente ansiava por um filho que correspondesse às suas expectativas dum estatuto ideal. Kafka não era isso: nascera um pequeno e ansioso rapaz. E permaneceria assim o resto da sua vida. Sem culpa própria, tornar-se-ia uma desilusão para o seu pai, e um saco de pancada psicológica, enquanto este tentava moldá-lo para ser um "homem exemplar", o qual Franz nunca poderia ser.
Durante a sua adolescência, Kafka desenvolveu uma enorme vontade de escrever, de forma a lidar com o seu crescente sentimento de ansiedade e culpa. Claro está que o seu pai não permitiu que continuasse a escrever, forçando-o a exercer advocacia como profissão.
Durante os seus anos de faculdade, Kafka continuou a escrever e conheceu um dos seus únicos amigos, Max Brod. Tendo-se licenciado, foi trabalhar para um escritório de advogados e depois para uma companhia de seguros. Durante esta altura, Kafka ficaria sujeito a longas horas de trabalho, horas extraordinárias não remuneradas, enormes quantidades de papelada e sistemas burocráticos absurdos e complexos. Era compreensivelmente miserável.
Enquanto trabalhava na companhia de seguros, Kafka produziu as suas obras mais notáveis, como O Processo, O Castelo e Amerika. Não tentou publicar nenhuma delas e até deixou alguns dos seus trabalhos inacabados, acreditando que não eram notáveis.
Continuando a trabalhar na respetiva empresa durante o resto da sua curta vida, acabaria por morrer em 1924, aos 41 anos, vítima de tuberculose. Kafka nunca chegou a publicar o seu trabalho, nem recebeu qualquer reconhecimento pelo que fez. Morreu a acreditar que tudo o que escrevera era inútil. À beira da morte, chegou mesmo a instruir Max Brod para que queimasse as suas obras. Tal não aconteceu, pois aqui estamos, quase um século depois, a falar sobre ele.
Ao longo da década posterior à sua morte, Kafka tornar-se-ia uma das mais importantes figuras literárias e filosóficas do século XX. Por outras palavras, um dos maiores escritores e pensadores do século viveu a sua vida com ideias enterradas numa gaveta, indiferente ao facto de estar sentado sobre algumas das obras mais impactantes da História. E, no entanto, aos olhos dessa mesma História, foi uma figura única.
Felizmente, o trabalho de Kafka foi salvo e um género de pensamento e escrita inteiramente novo desenvolveu-se em seu nome: kafkiano. Geralmente, o termo refere-se à natureza burocrática dos sistemas capitalistas, judiciais e governamentais. A processos complexos e pouco claros, em que ninguém tem uma compreensão abrangente do que se está a passar e o próprio sistema não se importa. Não se limita a exemplificar os sistemas, mas também a reação dos indivíduos que lhes foram submetidos e o seu simbolismo.
Num dos seus exemplares mais famosos, O Processo, o protagonista Joseph K é subitamente preso, durante uma manhã, na sua própria casa. Os agentes não o informam do motivo da sua detenção. K é então submetido a um longo e absurdo julgamento onde nada é realmente explicado ou faz muito sentido. O processo está repleto de corrupção e desordem e, no final, K permanece culpado e não chega a saber por que foi preso.
Nas suas histórias, os protagonistas são confrontados com circunstâncias súbitas e absurdas, sem explicações e nenhuma hipótese real de ultrapassá-las. São dominados pelos obstáculos arbitrários e sem sentido que enfrentam. Em parte, porque não conseguem sequer perceber ou controlar o que está a acontecer. Na literatura de Kafka há sempre este confronto com o absurdo. Um conflito no qual os esforços e o raciocínio das personagens são cedidos a uma falta de sentido, onde o sucesso é impossível e, no final, inútil. E, no entanto, elas persistem.
Talvez essas circunstâncias sejam emblemáticas da visão de Kafka sobre a condição humana. Nomeadamente, o insistente desejo de respostas sobre os problemas existenciais da vida, ansiedade, culpa, absurdo, sofrimento; e uma incapacidade de realmente entender a fonte desses problemas ou superá-los. Talvez a parte mais importante seja que, mesmo diante de circunstâncias desesperantes, as personagens de Kafka não desistem. Pelo menos inicialmente, elas insistem e lutam contra as suas situações, puxando por algum raciocínio que supere a insensatez. Mas, no final, é inútil.
Kafka poderia estar a sugerir, com tudo isto, que a luta para encontrar consolo e compreensão seja inescapável e, simultaneamente, impossível. Enquanto seres conscientes e racionais, lutamos contra o absurdo, tentamos resolver a discrepância entre nós e o universo. Mas, ironicamente, servimos apenas para perpetuar a própria luta que estamos a tentar resolver, ao tentar resolver o que não pode ser resolvido. E, nesse sentido, a um certo nível, quase que queremos essa luta.
Esta é uma interpretação entre milhares de outras, devido à natureza vaga, surreal e inexplicável das obras de Kafka. Talvez a ideia central seja a de que devemos aceitar a nossa absurda condição e não levá-la tão a sério. Talvez a ideia seja a de que devemos recusá-la e lutar contra ela. Ou talvez a ideia seja a de que não podemos saber qual é a ideia. Apenas Kafka terá conhecido o verdadeiro significado do seu trabalho. E talvez seja justo adivinhar que, num certo sentido, nem ele próprio sabia.
A verdade é que Kafka deixou um impacto duradouro na literatura, na filosofia e na humanidade. Ajudou leitores pelo mundo fora a sentirem-se menos isolados nos seus próprios momentos de busca por um significado e nos momentos mais kafkianos. A sua própria vida não foi necessariamente incomum. Nascer no lugar errado ou na altura errada, viver e morrer sem nunca ter reconhecido o próprio potencial. Ter sentido a máquina burocrática empresarial ou governamental. Ter sentido a ansiedade da existência sem qualquer justificação. Todos nós já passámos por algo kafkiano.
Kafka não é considerado um génio por ter descrito algo profundamente único, mas sim por ter descrito algo tão mundanamente comum numa forma tão profunda. Os excertos das frequentes e indescritíveis experiências da vida que nos tocam a todos nós.
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