De Teresa Blanco
Não gosto de spoilers, nunca gostei. Quando vou ao cinema gosto de sentir-me absolutamente sem ideia do que me espera.
Hoje em dia, já não vejo trailers - mostram demasiado detalhe e, por vezes, “estragam” falas fantásticas de um filme.
Quanto a livros, a experiência é semelhante. Não sou de ler sinopses na contracapa, ou críticas no Goodreads. O que por vezes faço é, se estiver indecisa entre qual livro comprar, folhear as primeiras páginas.
No entanto, como ler é um exercício mais longo e individual do que ver um filme, creio que uma boa citação pode ser o suficiente para me entusiasmar com um novo autor. É por isso que hoje trago um dos meus autores contemporâneos preferidos: Valter Hugo Mãe.
A primeira vez que li Valter Hugo Mãe foi uma total surpresa, pela rapidez com que devorei o livro – coisa que, infelizmente, desde as noites longas de leitura na pré-adolescência, é raro acontecer.
Bastou-me o primeiro livro para ficar rendida, e nunca mais larguei o autor. Gostava, por isso, de partilhar a minha total admiração pela forma como a sua escrita me agarra.
“A máquina de fazer espanhóis”, de 2010, foi o primeiro livro que li de Valter Hugo Mãe.
Foi-me recomendado pela minha mãe, enquanto conversávamos sobre a minha avó, nonagenária, e sobre a velhice e os seus inconvenientes. O livro é narrado na primeira pessoa do singular e fala-nos de um senhor que acaba de ficar viúvo, o senhor Silva, e que vai viver para um lar.
O senhor Silva é o típico senhor resmungão, com pouca paciência para viver e conviver, sobretudo depois de um desgosto de amor pela perda da sua mulher.
Com essa mágoa, é fácil ter compaixão por este senhor, que diz “(...) passamos a ser cidadãos terrivelmente antipáticos, mesmo que façamos uma gestão desse desprezo que alimentamos crescendo. E só não nos tornamos perigosos porque envelhecer é tornarmo-nos vulneráveis e nada valentes (...)”.
Este livro fala-nos da teimosia da velhice, de angústia, de ceticismo, mas com um twist muito cómico.
Valter Hugo Mãe consegue contar-nos uma história universal que marca pela sua crueldade, não sem dar um pouco de garra e “nariz-empinado” à personagem principal.
É impressionante como certas frases do livro são, quase, palavra por palavra, aquilo que oiço a minha avó e outras pessoas mais velhas dizerem:
"Um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprendê-las (...)”.
Em família brincamos com esta situação pois, de facto, uma pessoa com 90 anos pode parecer, por vezes, uma criança de 10...
Este romance, apesar de corroborar a ideia de que, na velhice, pode ser desafiante viver com motivação e ânimo para o dia-a-dia, demonstra uma certa evolução da personagem principal que acaba por criar uma amizade engraçada com outros colegas do lar.
Sou muito fã de narrativas trágico-cómicas, porque considero que a vida é assim.
Acredito que Valter Hugo Mãe ganha com a forma subtil com que nos conta uma história - que pode ser a mais triste e realista, mas mantendo os seus momentos absurdos que nos fazem agarrar à barriga de tanto rir.
Para mim, o seu estilo de escrita demonstra uma empolgante dicotomia, entre frases poéticas e inspiradoras, e expressões grotescas ou palavras pouco comuns de encontrar num livro. Diria, por isso, que este é um autor que verdadeiramente traduz o que é ser português.
O Filho de Mil Homens e Contra Mim
Encontrei a mesma subtileza do escritor no livro “O filho de mil homens”, de 2011. Este descreve a história de um pescador solitário, Crisóstomo, que aos 40 anos se sente incompleto e vai à procura de um filho.
A história segue a vida desta humilde personagem, que acaba por conseguir encontrar a sua companhia num rapaz órfão, e de outras tantas cujas histórias se entrelaçam.
É um livro focado no amor e nas suas diferentes formas, na humanidade, e nos infortúnios da vida, e, por isso, lê-lo deixou-me com um constante nó na garganta.
É uma escrita que comove pela sua sensibilidade:
“O Crisóstomo explicava que o amor era uma atitude. Uma predisposição natural para se ser a favor de outrem. É isso o amor. Uma predisposição natural para se favorecer alguém. Ser, sem sequer se pensar, por outra pessoa.”
Os temas que fui encontrando na leitura de Valter Hugo Mãe – o amor e as suas diferentes expressões; a ingenuidade e inocência da infância; a dureza da vida rural no nosso país; o papel da mulher na família, entre outros, - brotam da sua experiência de vida, contada em “Contra Mim”.
Este livro autobiográfico foi escrito em 2020, ano em que, como tantos de nós, o escritor se permitiu olhar para dentro.
O autor conta-nos da sua infância, entre Angola (onde nasceu), Paços de Ferreira e Vila do Conde. Fala-nos da sua família numerosa, educada na religião católica, fala-nos dos colegas de escola traquinas e das reguadas dadas pelas professoras, e fala da sua apetência para a poesia desde muito cedo.
Neste livro, dá a entender que a poesia sempre fez parte de si, mas só tarde realmente compreendeu a ligação e influência desta na sua escrita contemporânea -“Eu, por um comportamento irrepreensível, furtava-me a ser visto como criança em muitos momentos e já brincava quase só com palavras.”
Em “Contra Mim" faz um exercício de memória meticuloso, mas sem necessariamente apresentar uma cronologia ou ordem certa.
Senti uma forte empatia ao ler este romance, não porque as nossas histórias de vida tenham sido necessariamente parecidas, mas por haver sem dúvida vivências transversais da infância, independentemente da geração, e duma educação católica e conservadora.
Neste livro, Valter Hugo Mãe permite-nos chegar mais perto e compreender que, desde cedo, traz consigo uma mestria com as palavras e uma forte consciência sobre o mundo à sua volta:
“O que queres ser quando fores grande? Feliz. Já tinha querido ser bombeiro, polícia, santo, padeiro e professor. Subitamente, parecia-me a felicidade melhor do que uma profissão. Ser, de todo o modo, é bem distinto de fazer.” Lindo!
A leitura deste autor significa pensar sobre temas relevantes e atuais, mas com um caráter leve e fluído.
Daí ter mencionado que, desde que comecei a ler Valter Hugo Mãe, não parei. Sei que posso contar com momentos de seriedade e melancolia, mas também momentos caricatos ou irónicos.
Num período política e socialmente conturbado como o que vivemos, gosto de “voltar às origens” e ao essencial nas histórias de Valter Hugo Mãe.
Sei que ao ler os seus livros, irei sempre refletir sobre a vida e sair, de alguma forma, transformada.
É como se a sua leitura me permitisse olhar o mundo de outra forma ou, por outra, aprimorar a forma como olho o mundo.
P.S.: Se ficaram com curiosidade, Valter Hugo Mãe lançou “Deus na Escuridão” em janeiro deste ano e tem conversado sobre o livro por todo o país.
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