Crónica de Maria Teresa Santos
Estávamos no final de Fevereiro em Portugal e, apesar de ainda andarmos a brincar ao paciente zero, já não se falava de outra coisa sem ser futebol e coronavírus. Eu, contra os pedidos dos meus familiares e amigos, fazia as malas e partia para a Coreia do Sul, o segundo país do mundo com maior número de infetados.
Uma semana antes da minha partida, a Coreia do Sul tinha apenas 30 casos de COVID-19 e, no dia em que cheguei, os números tinham saltado para 977. Embarquei num avião a um terço da sua capacidade e cheguei a uma cidade gigante, vazia, gelada, cinzenta e pensei “no que é que eu me fui meter?”.
Ao chegar ao bairro onde ia viver, conheci logo outros alunos de intercâmbio e vivemos os primeiros dias nesta nova cidade muito intensamente: os restaurantes e os bares eram só nossos, não percebíamos o telejornal e não compreendíamos a gravidade da situação, preferíamos nem saber! Durante uma semana, fomos senhores da cidade, não havia filas, não havia transito, não havia vida, era tudo nosso e estávamos determinados a aproveitar ao máximo o nosso tempo em Seoul, visto que a possibilidade de termos de voltar para casa era cada vez mais eminente.
Todos os dias os meus pais e amigos pediam-me que voltasse, diziam que se o corona chegasse a Portugal, estaria muito mais segura junto deles. Eu adiava o regresso, dizia que daqui a uma semana pensávamos melhor sobre isso, mas quando a próxima semana chegava, adiava mais uma semana. Foi então que o mais inesperado aconteceu: os casos na Coreia começaram a descer, os de Portugal a subir; as ruas de Seoul começaram a encher, as de Lisboa começaram a esvaziar. Do nada, encontrava-me no sítio mais seguro do mundo, e apercebia-me que, vir para Seoul, tinha sido a escolha certa.
Mas como é que isto tudo aconteceu? Como é que a Coreia conseguiu dar a volta à situação, no espaço de duas semanas, sem ter de trancar as pessoas em casa, enquanto Portugal teve de estabelecer medidas agressivas de distanciamento social e, mesmo assim, os casos continuam a subir?
É verdade que esta comparação não é justa, afinal de contas, em 2015, a epidemia de MERS provocou o caos na Coreia, permitindo-lhes aprender com os seus erros e prevenir uma epidemia futura. Definiram protocolos detalhados, mudaram as leis e abasteceram-se de todos os materiais necessários para um ataque futuro. Assim, quando havia apenas 30 casos no país, equipas de cientistas já tinham criado kits de teste para o COVID-19 e em menos de uma semana, estes foram distribuídos pelos hospitais do país aos milhares, para que uma rede de 6 000 locais tivesse capacidade para testar gratuitamente até 20 000 pessoas por dia!1 Nunca faltaram máscaras (oferecias à população nos correios), ou desinfetante (disponível gratuitamente em todos os estabelecimentos comerciais e transportes públicos) e, apesar do medo, que levou a que muitas pessoas ficassem em casa nos primeiros dias, o governo nunca instituiu medidas de distanciamento social, por isso a economia não sofreu muito.
Acima de tudo, o que permitiu que Coreia atingisse estes resultados no combate ao coronavírus foi a mudança da lei após 2015. Apercebendo-se da impossibilidade de rastreamento de contactos entre infetados e não infetados, durante a epidemia de MERS, o governo Coreano alterou as leis, permitindo o acesso e publicação da informação pessoal de todos os infetados. Isto significa que, assim que uma pessoa é testada positivo para COVID-19, o governo tem acesso a todos os seus movimentos passados registados pelo seu telemóvel, veículo e cartão de crédito, bem como a todas as imagens das milhares de câmaras de segurança distribuídas pelo país. De seguida, não só são capazes de identificar e testar as pessoas com quem o novo infetado esteve em contacto físico, como publicam um registo detalhado de todos os seus movimentos, permitindo que as pessoas que estiveram em contacto com os mesmos objetos que o novo infetado, se dirijam a um centro de teste de COVID-19.
Apesar de eficiente no combate a uma epidemia, este método de rastreio de infetados é uma clara violação da privacidade de todos os residentes da Coreia do Sul. No entanto, é possível instituir este tipo de medidas, porque a cultura Sul Coreana dá prioridade aos interesses públicos, pondo de lado alguns direitos humanos, quando necessário, algo que não acontece na cultura portuguesa.
Imagino que muitos fiquem chocados ao saber que a Coreia apenas está a conseguir seguir com a sua vida normal devido ao uso agressivo de vigilância da população. Aqui, “Big Brother is watching you”, literalmente. No entanto, o que será preferível? Liberdade ou Privacidade? É claro que a privacidade é uma forma de liberdade, mas será melhor ter a possibilidade de sair de casa, ou o controlo sob a nossa informação pessoal?
Infelizmente, numa situação destas, não é possível ter os dois sem perder o controlo e esta decisão tão importante nem pode ser tomada por nós: eu não escolhi ser vigiada e os portugueses não escolheram ser confinados às suas casas. No entanto, essa decisão está tomada: para ter liberdade, eu tenho de abdicar da minha privacidade e para terem privacidade, quem está em Portugal, tem de abdicar da sua liberdade.
As medidas de distanciamento social foram aliviadas em Portugal e os números voltaram a subir. Os portugueses receberam a sua liberdade de volta e não tiveram de abdicar de mais nada. Parece simples: ficamos umas semanas em casa e depois podemos voltar com a nossa vida ao normal! No entanto, os números em Portugal continuam a subir e eu observo, à distância e com o coração nas mãos, a vida que muitos portugueses levam, enquanto os casos sobem de dia para dia. O COVID-19 ainda não acabou e a vida obriga-nos sempre a abdicar de algo.
Eu nunca tive de ficar fechada em casa, como a maioria dos portugueses tiveram e não acho que seja justo dizer que imagino como possa ser, ou o que possam ter sentido. Acredito que seja difícil e, honestamente, não sei o que faria quando aliviassem as medidas de distanciamento social, após ter estado tanto tempo fechada em casa. Muito provavelmente saía, como muitos fizeram, ia à praia e aos cafés e fazia tudo aquilo que queria ter feito durante a quarentena. Mas a verdade é que estes comportamentos nos estão a conduzir de novo ao abismo e basta uma ida à praia, um esquecer da máscara em casa, ou uma ida ao café para anular todo o esforço que foi feito até agora e nos levar, de novo, ao princípio: fechados em casa, sozinhos e aborrecidos.
O pior de tudo, é o efeito que estes comportamentos possam vir a ter nas medidas que vão ser tomadas no pós-pandemia. Se não é possível manter os portugueses em casa, sem os levar à loucura e se não é possível confiar no bom senso da população para ajudar na prevenção do caos, que outras opções é que deixamos àqueles que decidem as medidas que são tomadas?
Aquilo que fazemos hoje já não é apenas algo que afeta a nossa vida, mas sim algo que afeta a vida de todos, no presente e no futuro. Já não é apenas algo que determina os números de amanhã, mas também algo que determina as medidas que serão tomadas quando tudo isto acabar.
Liberdade ou privacidade: uma escolha que não podemos fazer desta vez, mas que as nossas ações de hoje fazem para o futuro.
Fontes:
Comments