Se é verdade que há negacionistas e jovens despreocupados, também é verdade que a maioria da população simplesmente não tem outra escolha que não arriscar todos os dias o contágio.
Crónica de Inês Tielas
Cronista em Londres
O Reino Unido prepara-se para aplicar medidas mais severas de contenção à Covid-19, após o governo ter admitido esta semana que o país não tem capacidade para realizar os testes necessários. As restrições foram anunciadas, em tom muito “churchiliano”, por Boris Johnson, na noite de terça-feira, em directo: restaurantes e pubs deverão fechar às 22h, máscaras deverão ser usadas em mais espaços, a chamada “regras dos seis” (que limita ajuntamentos a 6 pessoas) passará a ser implementada também em espaços abertos, aplicação de novas multas, e ameaça ao uso de forças de segurança caso as medidas não sejam seguidas pelo povo. Este discurso contrasta com um país, e, sobretudo, uma capital onde o panorama social não se consegue reduzir a chavões e numa altura em que os parcos apoios económicos estendidos às pessoas e empresas afetadas vão acabar.
Quem são, então, estes londrinos descontrolados que não conseguem que os casos deixem de duplicar constantemente? Por um lado, há um forte movimento negacionista da pandemia em Londres. Este movimento tem feito uma série de eventos públicos e manifestações de modo espalhar a teoria da plandemia, e pressionar o governo a retirar as restrições impostas. Por outro, existe todo um sector da sociedade que, pela natureza das funções que desempenha, se encontra a trabalhar a partir de casa há meses e que tem mantido uma vida social ativa mas controlada (com mais reuniões dentro de casa, em parques arejados…), e que, provavelmente, tem conseguido cumprir as recomendações sanitárias de forma relativamente exemplar. Isto é comprovável quando se passeia pela City e por Canary Wharf, os distritos financeiros e corporativos de Londres, cujos escritórios desertos se traduzem em ruas deixadas ao encargo de uma ou outra visitante curiosa. Uma terceira parte da sociedade, em particular os mais jovens, vive despreocupadamente a sua juventude, fazendo festas nas casas uns dos outros, e indo aos bares e pubs até ser hora do fecho, devolvendo à sociedade (e aos adultos) a mesma preocupação que esta tem tido pelo seu bem-estar nas últimas décadas.
Existe, no entanto, um quarto sector da sociedade britânica que não se revê nem no negacionismo, nem na despreocupação, nem no cumprimento zeloso das regras. É este quadrante que enche as ruas do Este e Sul de Londres (e não só), que trabalha sem folgas para manter os seus pequenos negócios, que faz comutas de mais de uma hora para cada lado para manter a cidade a funcionar, que teve de tirar do seu bolso para garantir que os seus negócios estariam “Covid ready” (as máscaras, as proteções de plástico, etc… não se pagam sozinhas) e que, em suma, tem aguentado o peso da crise quase inteiramente sozinha, sacrificando a sua saúde e a dos seus porque o que assusta mais que a Covid é não ter comida para pôr na mesa e na conta do senhorio no final do mês.
A covid-19 tem sido usada por todos os governos para reacender um nacionalismo dormente nas populações. Cada país tira do bolso o seu leque de mitos e valores nacionais prediletos e usa-os para convencer o povo a ser obediente: em Portugal encara-se a crise como um dever cívico, mais um teste para se provar ao mundo que se é bom aluno, um país pequeno mas capaz de tudo; em Inglaterra usa-se a linguagem de combate do tempo da Segunda Guerra Mundial, chavões poeirentos como o “nunca tantos deveram tanto a tão poucos” para reavivar no coletivo a abnegação e o espírito de sacrifício. Assim, cada país começa a olhar para os outros com desdém: “lá andam todos na rua em festa, não usam máscara e é por isso que isto lá está assim!”. Uma crise sanitária e económica consegue transformar-se, de modo muito eficaz, numa competição de nacionalismos rançosos que distrai da questão central: não basta bom-senso e boa-vontade para controlar uma pandemia, e isto é verdade em todo o lado, mas é-o em especial nas grandes cidades como Londres.
Se é verdade que há negacionistas e jovens despreocupados, também é verdade que a maioria da população simplesmente não tem outra escolha que não arriscar todos os dias o contágio. Não se pode esperar milagres quando, em prol de não quebrar a ficção de que o livre-mercado está a saber dar uma resposta fenomenal à crise e de que a culpa é dos indivíduos “preguiçosos” e “estúpidos”, não se disponibilizam ajudas amplas e imediatas para que as pessoas possam efetivamente ficar em casa, independentemente do trabalho que realizam. Não se pode esperar uma contenção do vírus quando, mal abrandam os casos, se exorta as pessoas a sair de casa, jantar fora, ir ao cinema, usar os transportes e “ajudar a economia”, como tantas vezes se pediu aos londrinos que fizessem.
Não se pode querer, como se diz por cá, “ter a tarte e comê-la também” porque das duas uma: ou não se come tarte nenhuma, e descontrolam-se os casos e sentencia-se à morte não só milhares de pessoas como um sistema de saúde inteiro, ou se come a tarte toda e deixamos de ter contágios a troco do sistema de segurança social não aguentar a avalanche de pedidos de recurso ao fundo de desemprego e as mortes por pobreza que se seguirão. Às vezes é mesmo preciso pensar antes de agir e agir em conformidade antes de culpar, multar e fazer séances para pedir ao Churchill uma solução rápida e indolor para um problema que requer máscaras e higiene, mas sobretudo fortes estruturas coletivas capazes de não deixar ninguém para trás.
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