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Lá (não) vai Lisboa

As comemorações do dia de Santo António nunca falharam desde que se iniciaram, no século XVIII.Lisboa nunca deixava de ser Lisboa. Apesar de todos os entraves, dos anos menos bons da pesca de sardinha, da crise económica, da enchente turística, os santos não acabaram.

Crónica de Maria Madalena Freire

Pela Estrada Fora - Dia de Santo António


No meu 1º ciclo, sabia-se que o terceiro período estaria a terminar e, consequentemente, o ano escolar, quando a querida Nanda - nossa professora de música - nos colocava, aos pares, em fila indiana. Normalmente, era um entusiasmo grande ficar ao lado de quem se engraçava. Muitas das minhas amigas delineavam estratégias, quase dignas de secretaria militar, para calhar com aquele rapaz. Eu focava-me em aprender a letra, os paços certos, quando era suposto por as mãos na anca, marchar no mesmo sítio e avançar quando a Nanda gesticulava feroz e apaixonadamente ao som dos tambores da Marcha de Lisboa. Na hora de dar a mão ao parceiro, as minhas amigas coravam - depois passavam a tarde a detalhar o que sentiram, como se, só com aquele toque, tivessem encontrado a sua alma gémea - eu, só me irritava, porque o meu par era sempre inútil e desinteressado em fazer a marcha corretamente, como qualquer rapaz afinco em afirmar a sua masculinidade na indiferença de uma “dancinha”. Sentia que, se não o fizesse bem, não só não agradaria a Nanda, a quem eu detinha o maior respeito, mas que desiludiria Amália que tanta confiança depositava em mim para fazer jus à tradição lisboeta. Se eu achava que isto faria Amália rodopiar em revolta no túmulo, então que ela não esteja ciente do que Lisboa passa nestes dias. E, graças a Deus, que o passado “eu” também não o testemunhou, porque a minha mãe teria de lidar com os prantos bastante exagerados.


Qualquer alfacinha tem consciência que Lisboa é uma cidade caracterizada, nos tempos que correm (ou correram), pela pressa e pelo turismo. A pressa dos carros, das pessoas na calçada, dos grandes prédios que guardam pequenas, médias e grandes empresas com trabalhadores a teclar dia adentro, por estudantes atrasados para as aulas, táxis e ubers à procura de recolha, ingleses, holandeses, americanos com as suas máquinas fotográficas a impedir o caminho, a encher as esplanadas e numa competição para ver quem consegue chamuscar mais a pele.


Apesar da, ainda maior, descaracterização que sofreu, nestes últimos dois meses, Lisboa começou, recentemente, a ganhar um pouco mais de vida. Sim, ainda consigo atravessar a cidade com mínimos entraves às seis da tarde - o que antes seria hora infernal para se ir de uma ponta a outra - mas dá-me gozo observar as filas nas esplanadas só para tomar café, pequenos grupos de amigos que ocupam a relva nos jardins junto ao rio, parques com crianças a desfrutar de brincadeiras com as suas máscaras personalizadas e os primeiros trabalhadores a abdicar do portátil em casa.


Tivemos o 25 de Abril, com lotação limitada na Assembleia da República e com cantos à janela; Tivemos o 1º de Maio, com uma manifestação organizada e estruturada de acordo com as normas da DGS; Tivemos a manifestação de Black Lives Matter que, apesar de não ter cumprido na perfeição as normas de distanciamento social, estima-se que 90% das pessoas usava máscara, como relatado por quem esteve presente; Tivemos o 10 de junho, com 8 figuras governamentais, as demais figuras da força aérea, militares em número reduzido, os caças e as gaivotas que quiseram (e puderam) assistir. Mas a 13 de Junho, quando Lisboa era mais Lisboa, quando a única pressa que se tinha era a de conseguir mesa para comermos uma bifana ou sardinhas, e os ingleses, holandeses e americanos eram abafados na manada que se entranhava - excedendo os limites racionais de espaço - nas ruelas de Lisboa antiga, a dia 13 de junho, o dia em que mais se tinha, nada teremos.

Dado que Lisboa e Vale do Tejo apresenta quase a totalidade casos positivos de covid-19, tornando Portugal um dos países com maior aumento de casos, de momento, na Europa, a fiscalização e o policiamento nesta semana que se segue será reforçada. Em tempos em que tudo se podia e as esplanadas nem chegavam a fechar, abriam às 9 da manhã dia 12 e assim se mantinham até às 7/8 da manhã do dia 13. Agora, fecham a meio da tarde, não penduram sardinhas nem manjericos em papel, não preparam o grelhador, ainda com vestígios dos churrascos do ano passado, não preparam a banca de cerveja no passeio à frente do seu estabelecimento, nem desenrolam os múltiplos fios, pelos que se tropeçam, que vão da entrada do café até onde colocaram as colunas que dão desde Amália a Quim Barreiros.



Mesmo de férias, em trabalho ou em exames, qualquer lisboeta parava para a noite de dia 12 e o resto de dia 13. Não me lembro, desde que tenho memória viva, de não ter um manjerico em casa, pelo qual passava a mão e cheirava todos os dias. Lembro-me até de um ano em que percorri com duas amigas a cidade inteira, desde a Rua Castilho, até a Avenida da Liberdade, onde parámos para ver as marchas e os casais a dançar, até à Graça, Mouraria, Alto do Pina, Alfama, Bica, Cais, Santos. E eu não sou pessoa para andar, mas na noite de 12 ganho novas pernas, que nunca vacilam até à chegada de madrugada a casa, com cheiro a churrasco, a gente e, provavelmente, a cevada que eventualmente me atingiu de uma maneira ou de outra.


É a noite em que as velhinhas sozinhas nas antigas casas dos bairros e das ruelas se sentem acompanhadas, sentam à varanda ou empoleiram-se à janela enquanto lhes cantamos a música eterna dos Xutos e Pontapés ou um fado que lhes é querido. É a noite em que Santo António é casamenteiro e Lisboa testemunha. É a noite em que todos são um, em que Lisboa não dorme, em que Lisboa dança, canta e encanta , em que Lisboa mostra o que ainda tem, o que ainda perdura, apesar da descaracterização que se verifica nos últimos anos. É a noite em que contraria os vestígios da globalização, do turismo e se afirma como caricata, única que é.

É perceptível as proibições e restrições impostas pela DGS e o governo. Porém, não vejo porque não poderiam estabelecer normas, regras, limites, planificar para um melhor aproveitamento deste dia que caracteriza a capital como sendo a capital. Mais uma vez, o governo parece despreocupar-se com os fatores sociais e psicológicos que muito podem pesar nos tempos que advêm com a perda de algo tão simples, mas tão essencial para um sentimento de comunidade que, ao longo do ano, tanto se perde com os tais holandeses, ingleses e americanos. Portugal só conseguirá ultrapassar esta crise com uma boa recuperação da economia, mas também com um outro fator que pouco é falado, que em tanto influencia o bem estar do povo português: A cultura. A cultura cultiva um sentimento de comunidade, de pertença, de orgulho do que melhor temos. Há dias ouvi um economista dizer que o problema económico de Portugal assentava na procura. De oferta, nós temos muito, mas de procura não. O povo português não reconhece, muitas vezes, o bom que tem, não é instigado a procurar o que tem próximo, não lhe é cultivado aquele sentimento de orgulho pelo produto nacional. Sendo-lhe vendido o produto estrangeiro como topo de gama, porque cá? Cá nós não sabemos fazer nada. São festas como o Santo António em Lisboa que fomentam esse sentimento de procura, de desejo de querer o que é inteiramente português. A economia não se regula só com estratégias numéricas e contas. O português não é um número, o português é motivado pelo que sente e, se não lhe derem algo para que este sinta, para que este viva e não, simplesmente, para que sobreviva.

As comemorações do dia de Santo António nunca falharam desde que se iniciaram, no século XVIII. Apesar dos casamentos terem sido interrompidos no 25 de Abril e retomados nos anos 90, as festas em nome do Santo nunca cessaram. Lisboa nunca deixava de ser Lisboa. Apesar de todos os entraves, dos anos menos bons da pesca de sardinha, da crise económica, da enchente turística, os santos não acabaram. Sim, já não tenho a Nanda a conduzir-me na marcha, pois sei-as de cor em salteado, já não falho um passo e qualquer lisboeta é meu parceiro, que não é indiferente e não falha.

Como entoava Amália Enquanto os bairros cantarem; Enquanto houver arraiais; Enquanto houver Santo Antônio; Lisboa não morre mais”. Agora sem bairros a cantar, sem arraiais, sem Santo António, onde está, afinal, Lisboa?

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