Coloca-se a questão de saber como se pode preservar o balanço entre a liberdade de expressão e a legítima restrição, com fundamento nos interesses de uma sociedade democrática. Deverá o Estado intervir? Se intervir, como poderá fazê-lo?
Crónica de Marta Dias
Durante mais de quatro décadas, o conhecido “lápis azul”, muitas vezes usado noutras cores, traçou-se sobre milhares de livros, meios de comunicação e manifestações culturais. Atualmente, o exercício da liberdade de expressão encontra-se formulado em todos os parâmetros internacionais relativos aos Direitos Humanos. Porém, em tempo algum, houve tantos riscos associados aos abusos da liberdade de expressão como hoje. Segundo o relatório da Freedom House, os níveis de liberdade diminuíram parcialmente por todo o mundo no ano de 2020.
O início do século XXI foi marcado pela transição da revolução industrial para o novo domínio económico da tecnologia de informação. O espaço das redes informáticas e tecnologias, empregue sobretudo para possibilitar a livre troca de informações, tomou controlo do fluxo de informação. Deste modo, as tecnologias modernas de comunicação criaram, simultaneamente, novas oportunidades e novas ameaças.
Em primeiro lugar, a liberdade de difusão, e a liberdade de procura de informação ganharam espaço no poderio nacional e internacional. Alcançaram-se audiências mais amplas e deu-se voz a quem não a tinha. A consagração dessas liberdades integra, por sua vez, a iniciativa ocidental de defesa dos direitos fundamentais.
Em contrapartida, o espaço de liberdade pode ser utilizado incorretamente. Os desenvolvimentos tecnológicos, sendo em si neutros, podem ser instrumentalizados para fins mais obscuros. Abriu-se um leque de oportunidades para que os movimentos extremistas divulgassem temáticas de propaganda e de desinformação digital, procurando aumentar as suas bases de apoio, estimular os sentimentos antissistema e fortalecer a radicalização. A título de exemplo, o ataque terrorista à mesquita Christchurch (Nova Zelândia), no qual 51 pessoas morreram, originou num manifesto publicado na internet, sendo posteriormente transmitido ao vivo na plataforma do Facebook. Essencialmente, os militantes apostaram na propagação do discurso de ódio de base racista e xenófoba.
A tecnologia pode igualmente ser utilizada para manipular ou viciar uma tomada de decisão. Relembrando o caso do Cambridge Analytica, os consultores digitais da campanha de Trump usaram indevidamente dados pessoais de milhões de usuários do Facebook de modo a influenciar a opinião de eleitores em vários países. A propaganda ideológica e política resultou numa possível interferência no processo democrático e na própria eleição norte-americana. As tecnologias facilitaram este fenómeno, em especial, pela possibilidade de atuar de forma anónima e de alcançar um número alargado de pessoas.
A verdade é que as potencialidades de criar danos numa sociedade democrática são vastas. Coloca-se, por esse motivo, a questão de saber como se pode preservar o balanço entre a liberdade de expressão e a legítima restrição com fundamento nos interesses de uma sociedade democrática. Deverá o Estado intervir? Se intervir, como poderá fazê-lo?
No caso de intervenção, o Estado poderá apenas sinalizar conteúdos que entenda como nocivos. Poderá também criar legislação que imponha a redução de acesso a certos conteúdos que circulam nas redes. Alguns países já aderiram a estas práticas, limitando o acesso à televisão por satélite e à internet para impedir que os seus cidadãos acedam a lugares que consideram indesejáveis por pretextos políticos ou religiosos. Contudo, não estará o Estado a limitar as liberdades e os interesses dos utilizadores de forma injustificada? A reconduzir cada utilizador a uma minoridade entendendo que o utilizador não tem capacidade de decidir por si?
Por fim, estará o lápis azul a traçar-se no século XXI? Colocam-se mais questões do que respostas. A liberdade de expressão é um tema imprescindível que inquieta políticos, jornais, plataformas sociais e cidadãos. Discuti-la é uma forma de ambicionar as liberdades individuais, sem ambiguidades, e o interesse público.
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