Mais importante para mim do que qualquer estudo ou posição moral sobre morte é a injustiça das proibições de liberdades individuais.
Não adoro que estes temas dominem a atualidade política, porque normalmente significam que estamos a interpretar o papel do Estado de uma maneira que me chateia. A questão da morte medicamente assistida (MMA) opõe as pessoas que acham que o Estado deve impor aos seus cidadãos um quadro de valores morais a quem acha que o indivíduo deve ser livre de tomar decisões sobre o seu corpo desde que não interfira com a liberdade dos outros. Numa discussão com estes intervenientes costumo tender para o lado da liberdade. Por isso é que, apesar de defender que a matéria devia ser referendada, acho perfeitamente lógico e legitimo que o Parlamento aprove este avanço de liberdades individuais em Portugal.
Não vou estar aqui a discutir detalhes de legislação. Li os projetos todos, gostei mais dos da IL, do PS e do PAN, por esta ordem. Apesar disso, acho-os todos pouco ambiciosos e demasiado controladores, mas interessa-me pouco esgrimir argumentos técnicos numa questão que vai tão para além disso. Tem de haver alguma razão para as pessoas acharem os políticos aborrecidos e o facto de serem todos estudantes de Direito nunca me pareceu uma má hipótese. Ninguém quer falar de alíneas numa conversa normal.
Não me interessa, também, fazer desta uma crónica de combate à propaganda. Há logicamente argumentos válidos de oposição à MMA. Percebo perfeitamente quem o faz por uma questão de fé, por pudor em relação ao papel dos médicos e do Estado na decisão ou simplesmente por não querer dar essa opção a pessoas que estejam numa posição de pedir o fim do seu sofrimento. É muito diferente ter estas posições de forma desempoeirada e honesta e o que vemos por parte dos mais mediáticos opositores destas propostas. Desde comparações irresponsáveis com alguns dos momentos mais negros da História Mundial a passar atestados de incompetência (ou de falta de humanidade) a quem apoia a legalização, nada é demasiado baixo para uma turba que de conservadora parece ter muito pouco. Não digo que não haja este mesmo discurso do lado oposto, mas de revolucionários seria mais expectável exageros do que de pessoas que se dizem superiormente sensatas.
Criticado que está o degenerar do discurso, passemos ao que realmente interessa. A legalização da MMA é uma questão prática acima de tudo. Quem já tenha tido alguém próximo com uma doença terminal ou em enorme sofrimento nos seus últimos momentos já assistiu a uma espécie de MMA não regulada. Não sendo médico, e portanto pedindo desde já desculpa pela ignorância, não vejo grande diferença moral entre aumentar doses de medicamentos de alívio de dor progressivamente conduzindo a uma morte tranquila ou administrar uma única dose letal.
Do alto da minha ignorância, parece-me preferível ao que temos atualmente que a pessoa possa escolher evitar um momento de profundo sofrimento e falta de controlo sobre si mesma, escolhendo morrer com dignidade. Se a evolução da medicina nos permite controlar quando morremos de forma a evitar cenários de horror, porque não permitir a hipótese? Quem achar que isso não é natural não tem de o fazer, só tem de permitir que quem o queira fazer decida o seu próprio destino. Em vez de deixarmos esta decisão à descrição informal dos médicos e à sua relação com os pacientes, no processo cinzento o suficiente para não chatear muito ninguém, acho que era muito mais sério e seguro regular esta prática de forma a poder monitorizar seriamente e ter regras bem claras sobre como proceder. A legalização de práticas comuns é o Estado a reconhecer a realidade como ela é e não como gostávamos que fosse, tornando a sua ação mais eficaz e defendendo melhor as pessoas.
Podia estar aqui horas a mostrar como países e territórios em que esta prática foi legalizada não assistiram a nenhuma espiral de degeneração que levou a que toda a gente se suicidasse. Em países com cuidados paliativos de topo e territórios em que isso não é tão fácil de conseguir, a percentagem de pessoas que optam pela MMA é mais ou menos a mesma, nunca andando muito acima dos 5% (uma percentagem tão pequena, que até chateia que cause tanta discussão). Recomendo a leitura do trabalho do Dr. Ezekiel J. Emanuel, seja em “The Practice of Euthanasia and Physician-Assisted Suicide in the United States” de 1998 ou em “Assisted Suicide and Euthanasia” de 2003 para perceber como a lógica da “rampa deslizante” não é sustentada empiricamente.
Mais importante para mim do que qualquer estudo ou posição moral sobre morte é a injustiça das proibições de liberdades individuais. Isto porque apesar de ser proibida em Portugal e em quase todo o Mundo, a MMA tal como o aborto antes de si, está sempre disponível para quem tenha dinheiro suficiente. O mesmo se podia dizer das drogas ou noutros tempos do álcool. Estas proibições só nos expõem mais enquanto sociedade às injustiças produzidas pela desigualdade de rendimentos. Um Mundo em que tudo é legal para quem pode não é um Mundo em que eu queira viver. O suicídio é uma coisa transversal ao tempo a às classes, permitir que exista um Mundo em que ele é muito mais digno para uns do que para outros não me parece recomendável.
Não escrevo isto para expressar mais do que a minha perspetiva pessoal sobre este assunto, que confio ser da consciência de cada um. Por isso aliás defendo um referendo, porque considero que há muito pouca racionalidade à volta deste tema. É uma prática que no geral já existe numa zona cinzenta, decidir se queremos enquanto sociedade tirá-la das sombras e dar-lhe um “framework” legal (ou “normalizá-la”, para os mais céticos) depende muito da soma dos nossos valores individuais. Nada melhor que um referendo para tirar isso a limpo. Não acho que quem seja contra seja menos pessoa, nem menos humanista, nem muitos disparates que tenho visto aí escritos. Considerações sobre conceitos como a vida são obviamente subjetivas e quem toma as suas ideias como verdades absolutas não está a fazer mais do que passar um atestado de estupidez a si próprio.
Estando a legislação aprovada e gorada a hipótese de um grande diálogo nacional, acho que é importante ouvirmos um lado e outro para perceber melhor os medos de quem não queria legalizar a MMA e garantir que estes eram infundados. Tenho fé na democracia representativa e a certeza de que os deputados agiram em conformidade com os desejos da maioria do país, como prova uma sondagem recente do Jornal Económico (não fosse a MMA extremamente popular enquanto proposta em quase todos os países do Mundo que não têm maiorias fundamentalistas religiosas).
Morrer com dignidade, quando e como escolhemos está mais perto de ser possível em Portugal. É um motivo de orgulho e uma vitória para os liberais e progressistas deste país. E mais um momento para as forças conservadoras pensarem a fundo sobre o papel que querem ter na sociedade. Vão continuar a abrir guerras em todas as frentes com slogans dogmáticos para impedir o avançar do tempo? Ou vão aceitar que não são dominantes e tentar negociar compromissos sérios? Com muita pena minha, a resposta por todo o Mundo tem sido a primeira.
João Maria Jonet
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