Ruth Bader Ginsburg 1933-2020
Crónica de João Maria Jonet
Licenciado em Ciência Política e Relações Internacionais, NOVA-FCSH
Tenho de começar por homenagear Ruth Bader Ginsburg, uma gigante da jurisprudência norte-americana que, como advogada e juíza, foi porta estandarte da luta pela igualdade perante a lei, pelo cumprimento do espírito da legislação e pelo seu melhoramento.
Deve ser exemplo para todos os que fazem das discussões legais autênticos debates bíblicos, em que o precedente é tratado com uma santidade quase blasfema. As constituições podem ou não ser vistas como documentos adaptáveis ao avançar dos tempos, mas se começam a ser vistos como dogma o debate fica impossível.
Em Democracia, a lei não pode ser mais sagrada que a vontade popular. Ginsburg percebeu muito bem que esse era dos maiores problemas norte-americanos. Concordando ou não com a lendária juíza, só se pode ter respeito pela sua inteligência e sentido de missão. Fará muita falta.
A sua morte, aos 87 anos, consequência do seu 5º cancro, pode parecer um acontecimento natural aos mais desatentos. É, no entanto, um momento dramático para a Democracia norte-americana.
Notorious RBG (alcunha de figura de culto) não era só a autora carismática de mordazes opiniões de discórdia com a maioria conservadora que dominou o Supremo Tribunal nos seus 27 anos de mandato. No Tribunal de 9 membros era também membro do grupo de 5 (4 Democratas e o Juiz-Chefe Republicano John Roberts) que, nos últimos tempos, tem segurado o que resta de moderação e contenção no Tribunal contra o assalto aos direitos civis americanos que a Administração Trump está a fazer na justiça (apoiada entusiasticamente pelos 2 juízes que o Presidente nomeou e outros 2 ultra-conservadores herdados dos Bushes).
Seja na reforma eleitoral, na preservação do Obamacare, de leis anti-discriminação ou da legalização do aborto, a maioria conservadora bolchevique está investida em fazer uma revolução de normas e costumes. Agora, Trump tem a hipótese de a reforçar com um 5º elemento que a tornará invencível.
Tudo isto é um profundo atestado de incompetência ao sistema constitucional norte-americano. Em país nenhum seria normal que as grandes questões políticas se resolvessem todas em tribunais. Muito menos seria normal a saúde das instituições depender da sobrevivência de uma mulher de 87 anos. Ou, o facto de essa mesma morte levantar imediatamente um debate político gigantesco, sem que o corpo esteja sequer frio. Já para não falar dos Republicanos poderem alcançar uma maioria de 6-3 num período de tempo em que perderam o voto popular em 6 das últimas 7 eleições. Confirmados num Senado em que também perdem o voto popular desde o ciclo que acabou em 1998.
Acabar com a natureza vitalícia parece uma maneira fácil de resolver as questões mais mórbidas. Esta luta por nomear juízes que durem muitos anos e o combate contra a morte de juízes que não querem ser substituídos por Presidentes do partido oposto são uma garantia de um Supremo com pessoas pouco preparadas quando entram e demasiado desgastadas quando saem. Para além de pouco saudável para os intervenientes, dá uma sensação de tudo ou nada a estas batalhas de confirmação, que só radicaliza o discurso.
Estas "politiquices” desvirtuam o papel de imparcialidade dos juízes. Podem ser mais ou menos originalistas na leitura dos textos, mas essas diferenças de pensamento legal não se podem confundir com lealdades partidárias.
Quando na sua confirmação, Kavanaugh acusou uma cabala de Democratas liderada pelos Clintons de conspirar para o destruir, pôs a nu um problema antigo. O Supremo Tribunal é um órgão político com membros politizados, algo que seria natural se não fossem eles a decidir tudo sem ser eleitos para isso.
Não faz sentido que um país tenha o aborto legalizado por decisão judicial. A inação do Congresso não pode ser desculpa para se legislar pela magistratura. Os tribunais deviam forçar os legisladores a adaptar-se à opinião pública e não antecipar-se a eles.
Deviam, mas isso não é possível, porque o sistema norte-americano é uma coleção de disfuncionalidades que impede que se evolua legislativamente, o que quer que seja, desde o virar do século XX.
Apesar de sinistro, este drama à volta da morte de uma octogenária é o menor dos problemas políticos dos Estados Unidos. Sem reformas profundas, podemos estar perto de ter de assinalar a morte de uma Democracia bicentenária.
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