Crónica Satírica de João Moreira da Silva
Estudante de Direito, FDUL
Tudo corria bem na minha vida. Era uma tarde normal de Domingo, como qualquer outra. Tinha acabado de almoçar com a minha família e ia estudar para o meu exame de direito comercial.
Antes de começar a estudar, cumpri o ritual de olhar pela minha janela: mais um dia de sol em Lisboa, sem aparente sinal de chuva nem de marxismo cultural. Respirei fundo e voltei à secretária, pronto para mais uma tarde no meio dos livros.
Ia começar a ler o primeiro capítulo, quando o ecrã do meu telemóvel se acendeu. Tinha-me esquecido de desativar as notificações. “Não é dramático”, pensei eu, “certamente que uma pequena pausa de cinco minutos no meu telemóvel não vai alterar o rumo da minha vida”. Se pudesse viajar no tempo...
Li a notificação: “aborto e beijo gay em animação da RTP2 chocam pais”. Desbloqueei o telemóvel para ler esta notícia com um título bizarro. Eu até me considero liberal, mas agora falarem-me de aborto e homossexualidade assim abertamente na imprensa... enfim, não resisti e comecei a ler. No início, não percebi bem em que consistia a polémica. Não percebi se os pais referidos na notícia estavam chocados pelo aborto e pelo beijo gay ou pelo facto de ainda passarem programas na RTP2.
Para compreender melhor o fenómeno, sob pena de não poder discutir com seriedade a programação do Zig Zag nas caixas de comentários das redes sociais, decidi ir ver a série. “Perdido por cem, perdido por mil”, pensei eu, depois de se esgotarem os meus cinco minutos de intervalo de estudo.
Abri a RTP Play e selecionei o programa “As Destemidas”. Tudo o que aconteceu a seguir é uma espécie de nevoeiro na minha cabeça. Numa das nossas consultas, o meu psiquiatra explicou-me que, em 1894, Friedrich Nietzsche desenvolveu o conceito de esquecimento motivado, uma teoria segundo a qual os seres humanos reprimem as suas memórias traumáticas como forma de auto preservação.
Ainda assim, preservo algumas memórias desses 3 minutos de audiovisual. Lembro-me vagamente de ver uns desenhos animados a falar de aborto, homossexualidade, divórcio, feminismo e religião.
As minhas memórias começam a ficar mais vivas depois disto. Lembro-me de acabar de ver o vídeo e me levantar abruptamente da minha cadeira, atirando violentamente para o chão todos os livros e papeis de cima da mesa, enquanto gritava que queria imediatamente abortar o meu filho. Os meus pais entraram no quarto, preocupados com o barulho. Tiveram de me agarrar à cadeira e explicar que eu não podia abortar porque eu sou um homem e não estava grávido.
Fiquei ainda mais enervado. Disse-lhes que eram opressores e que a única forma de eu me libertar da sua opressão era através da luta de classes na nossa casa. Eles ficaram ainda mais confusos. Até aquele dia, eu era um rapaz calmo e que nunca tinha manifestado muitas opiniões políticas. Era sempre bem-educado, bom aluno, cumpridor das regras. “O que se passou?”, interrogavam-se os meus pais.
Enquanto me continuavam a agarrar, comigo a espernear e a declamar críticas radicais do modelo capitalista, o meu pai olha para a minha mãe e disse, com uma cara apreensiva: “eu já vi isto a acontecer há uns anos... pensei que nunca mais ia ver isto na minha vida...”. A minha mãe entrou em pânico: “por favor não digas isso... não pode ser!” Os meus pais estavam a perder as forças enquanto eu cantava o hino da Internacional Socialista em plenos pulmões. O meu pai olhou de relance para o ecrã do meu telemóvel e viu as Destemidas a passar. Constatou aquilo que mais temia: “é mesmo um caso de... marxismo cultural”.
Tiveram de chamar uma ambulância. Os próprios médicos não sabiam o que fazer, já não viam um caso destes há anos. Até há poucas horas eu era um jovem conservador, heterossexual, que não arranjava conflitos. Após ver o programa da RTP2, tentava explicar de forma exaustiva aos médicos que não me identificava com o género que me foi atribuído à nascença e que o Estado foi criado para proteger os interesses da classe dominante.
Entretanto fui internado e levado para uma clínica de reabilitação para vítimas de marxismo cultural. Há uns dias mais difíceis que outros, mas em geral estou bem. Foi o meu psiquiatra que me disse para experimentar escrever este texto, que me ia fazer sentir melhor. Num dos dias aqui na clínica, depois de beber um chá com um antigo frequentador dos campos de verão do bloco de esquerda, fui parar ao site da RTP Play. Descobri que o episódio que tinha visto tinha sido removido. Respirei de alívio e celebrei esta vitória com a leitura de um capítulo do meu livro de direito comercial- nunca mais ninguém ia ficar marxista depois de ser exposto a um vídeo de 3 minutos.
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