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Mestrado obrigatório? Não, obrigado

Será que a solução para conferir uma suposta “melhor qualificação” aos que aspiram a advocacia passa por colocar-lhes outro entrave económico, ou será que a solução não passará por um exercício de reflexão em que repensamos os atuais moldes de estágios da Ordem dos Advogados, adaptando-os às necessidades do mundo atual?

Reportagem de Matilde Pinhol


O verão de 2021 corria pacatamente para os estudantes de Direito portugueses. Enquanto uns se dedicavam aos estágios de verão nas mais variadas sociedades de advogados, outros aproveitavam as suas férias depois de um desgastante ano letivo (praticamente) online.


Como há sempre algo que foge ao nosso controlo, eis que surgiu em pleno mês de agosto um comunicado do Conselho Geral da Ordem dos Advogados. O mesmo era relativo a uma proposta onde ficaram explícitas um conjunto de alterações a serem efetuadas aos estatutos da própria Ordem. Estas alterações implicariam, resumidamente, o seguinte: apenas Mestres em Direito, Doutores ou Licenciados pré-Bolonha poderiam requerer a sua inscrição como advogados estagiários. Deste modo, ficariam impedidos de efetuar a sua inscrição como advogados estagiários os recém-Licenciados pós-Bolonha.


Luís Menezes Leitão, bastonário da Ordem dos Advogados, defende esta alteração, afirmando que os alunos formados agora, em licenciaturas de quatro anos, não têm a mesma qualidade que os formados anteriormente. Nas suas palavras à TVI24, menciona que “esta história de Bolonha foi tudo uma invenção para, pura e simplesmente, o Estado cortar 20% do financiamento nas Universidade Públicas, reduzindo os cursos de cinco para quatro anos e o resultado disso tudo é que nós temos advogados com menos 20% de formação. (…) Temos agora alunos com menos qualificação do que havia antes”. Acabou reforçando que os advogados nos dias que correm “não têm a mesma qualificação dos magistrados com que se defrontam todos os dias nos tribunais. Em termos de grau académico, ficam numa situação prejudicial”, sendo que a proposta corresponde àquilo “que acontece por toda a Europa”.



Em contraponto, Jorge Pereira da Silva, Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Católica, acusa a Ordem dos Advogados de insensibilidade social, relembrando que “Direito tem mais um ano (do) que a generalidade das licenciaturas” e que as mesmas “são acreditadas por uma agência imparcial”. Atendendo a esse facto, não existem “licenciados que estejam a fazer cursos que não têm qualidade suficiente”.


Algum tempo antes deste debate ter lugar na televisão nacional, uma onda de revolta gerou-se entre os futuros juristas, levando o Conselho Nacional de Estudantes de Direito (CNED) a tomar uma posição relativamente à questão que culminou, a 17 de setembro de 2021, numa manifestação em Lisboa que contou com dezenas de estudantes de norte a sul de Portugal. Num breve comunicado, deixaram claro que tal modificação nos estatutos se revelaria como apenas mais uma barreira aos alunos que, como se não bastasse, eram já “confrontados com uma tão conhecida situação pandémica, um agravamento cada vez mais notório da precariedade sentida no acesso às profissões jurídicas e um agravar das dificuldades vividas na luta contra o abandono e insucesso académico (…)”.


Tomei a liberdade de falar com alguns estudantes de Direito de Lisboa, Porto e Coimbra sobre a proposta em questão e, mais ainda, de colocar-lhes algumas questões, já que é fundamental darmos lugar de fala àqueles que mais serão afetados por esta situação. Tendo isso em conta, contactei a Luísa Agapito (aluna na FDUL e vice-presidente do CNED), o Miguel Cruz (aluno na FDUL e tesoureiro da AAFDL), o Tiago Cunha (aluno na FDUP e secretário-geral do CNED) e a Maria Vasconcelos (aluna na FDUC e presidente do NED da AAC).



Primeiramente, interroguei-os quanto às consequências práticas desta proposta para a vida dos estudantes de Direito. Unanimemente, destacaram a desigualdade que a mesma comporta, a começar pelo aumento dos custos que, para estudantes deslocados, já incluem custos mensais de habitação, alimentação e transportes, e a acabar num atraso no ingresso no mercado de trabalho, contando com oito anos de formação meramente teórica. Ainda relativamente a custos, a presidente do NED da AAC relembrou a questão das bolsas atribuídas pela DGES, as quais “são calculadas mediante a propina definida para a licenciatura, afigurando-se como insuficientes e completamente desproporcionais. (…) a não ser que se mude a ação social, estruturando bolsas adequadas aos custos do segundo ciclo de estudos e procurando soluções para um teto orçamental ou descida gradual da propina, creio que este será indubitavelmente um fator a favor do abandono escolar”.


Em seguida, questionei-os relativamente ao que é que ainda faltava fazer - será necessária mais uma manifestação como aquela que ocorreu em frente ao Conselho Geral da Ordem dos Advogados? Todos deixaram claro que será essencial o diálogo ativo e construtivo com os grupos parlamentares. Aliás, o CNED chegou a reunir-se com uma alguns dos grupos parlamentares antes da manifestação do passado mês, de modo a poder exercer alguma influência e pressão sobre os partidos políticos. A vice-presidente do CNED salientou que os alunos devem manifestar-se nas redes sociais e órgãos de comunicação social. Crendo também que esta proposta “reúne um enorme consenso junto dos estudantes”, “é essencial que seja feita outra manifestação, desta vez com ainda mais (estudantes)”. No fundo, e tal como alude Maria Vasconcelos, “essencial é não deixar o debate cessar, continuar este trabalho de sensibilização e educação política para o tema dentro das nossas faculdades e dentro do Conselho Nacional de Estudantes de Direito”.


Por fim, perguntei-lhes que outras formas existirão para demonstrar desagrado e fazer valer a opinião dos futuros juristas. O secretário-geral do CNED, Tiago Cunha, de imediato referiu que os estudantes têm de continuar a fazer aquilo que têm feito, ou seja, “denunciar, por força de argumentos lógicos e inteligíveis, a perversidade desta proposta. Fazê-lo em toda a linha, desde a errada comparação com o CEJ, da falsa ilusão da comparação com modelos de outros países ou na segregação e diminuição da licenciatura do pós-Bolonha que concretiza essencialmente as mesmas aprendizagens das licenciaturas que lhe antecederam”. Luísa Agapito não se fica atrás e relembra que “todos devemos primar pela melhor qualidade dos advogados portugueses”, contudo, existem outras formas de fazê-lo, seja através da fiscalização dos estágios, seja através da criação de mestrados mais práticos. Miguel Cruz chega a ir mais longe e, neste debate, suscita que poderão existir questões de índole constitucional e, eventualmente, questões de legalidade.



Agora que proposta foi aprovada em sede da Ordem dos Advogados, seguirá para o Parlamento, isto porque a Ordem se constitui como uma associação pública profissional, representativa dos que exercem a advocacia. Como tal, a lei que estabelece o regime jurídico das associações públicas profissionais (Lei n.º 2/2013, 10 de janeiro), obriga a que os estatutos destas associações sejam aprovados por lei (vide artigo 8.º da referida lei).

Não existe ainda data agendada para o debate na Assembleia da República, mas reforço que é crucial manter esta discussão na ordem do dia, tendo em mente que a advocacia possui, por si só e logo de início, barreiras de índole económica. Isto tudo para recordar-vos (ou para contar-vos pela primeira vez) que o estágio para a Ordem, cuja duração é de 18 meses, tem o custo de 1.500 euros, dos quais estão incluídos o valor da inscrição inicial no estágio (700,00 euros), o valor a pagar até 5 dias antes do fim da primeira fase do estágio (300,00 euros) e, por fim, o valor a pagar até 30 dias antes da data da prova escrita que integra a prova de agregação (500,00 euros). Posteriormente, existem ainda outros 300.00 euros, esses correspondentes à inscrição inicial já como advogado.


Será que a solução para conferir uma suposta “melhor qualificação” aos que aspiram a advocacia passa por colocar-lhes outro entrave económico, ou será que a solução não passará por um exercício de reflexão em que repensamos os atuais moldes de estágios da Ordem dos Advogados, adaptando-os às necessidades do mundo atual? Talvez, quem sabe, fosse isso mais frutífero.


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