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Morreu moderado, vítima de compromiso


Crónica de Afonso Madeira Alves


Peço-vos que percam uns segundos no seguinte pensamento:


“O controlo da palavra é o controlo do sinónimo, e o controlo do sinónimo é o controlo da reputação.” ( Paulo Portas no podcast do Observador “Artigo 38”. 28 Set 2019. (minuto 27)


Esta simples dedução lógica, enunciada por uma personalidade política, orador nato da nossa praça, tem-me atazanado a cabeça nos últimos tempos. É um pensamento que me invade sempre que ouço políticos, jornalistas, administradores de bancos, e populares falarem na mesma frequência, com o mesmo vocabulário, com as mesmas “frases feitas”. Em todos eles há uma qualquer falha no discurso que é imediatamente vilipendiada por todos nós. Culpa deles que já não sabiam o que dizer; culpa nossa que já julgáramos antes sequer de ouvir. De parte a parte, há um desleixo com as palavras que saem da nossa boca e dos nossos dedos, o que leva a uma procura desenfreada por sinónimos, forjados de forma a caberem numa incontestável narrativa.


É sabido o quanto o Português não quer saber do português. Temos menos apreço pela nossa Língua do que um certo toureiro tem pelos seus galgos. Subnutrimo-la inconscientemente e não a levamos em conta como ponto de partida para um debate mais saudável e moderado. Aproveitando esta última palavra, gostaria de vos apresentar a pessoa do Moderado. “Prazer”, diz ele.


O Moderado ouve todas as histórias que lhe contam, sempre com a mesma atenção e consideração. Deixa-se fascinar, especialmente por aquelas que nunca tinha ouvido. A diferença é para si uma oportunidade, não um obstáculo. Apesar disso, não entra em quaisquer fanatismos sectários ou religiões de salvação colectiva. Suspeita de quem se rege por ícones, ídolos e quejandos. O Moderado mede o que diz e respeita as palavras mais do que ninguém. Expõe a sua opinião apenas sobre o que sabe de conhecimento seguro e aprofundado, não se aventurando em mergulhar de cabeça nos assuntos do dia, baseados em boatos e factoides. O Moderado sabe que muitas das notícias de hoje se apresentam em segunda mão e que invariavelmente tentam fazê-lo sentir de uma forma pré-determinada por outrem. Não estranhem que seja uma pessoa calada, pois costuma praticar o silêncio sempre que ouve demasiado barulho. E quão barulhento isto está para agora ecoar o seu baixo timbre.


Porém, a sua quietude luta contra uma enorme vontade de intervir, de impor a sua óbvia razão sobre o mundo. Desengane-se quem pensa que é fácil ser moderado. Não o confundam com um neutro ou um ignorante. O Moderado é mais do que alguém que pede a todos para darem as mãos à volta de uma fogueira enquanto cantam o Imagine de John Lennon. Ele compreende que há mais do que a simplificação adjacente de um sim ou não. Não teme dizer que não sabe, mas recusa-se a ficar sem saber. Porque nem tudo está bem e há coisas que têm de mudar. O Moderado até tem um plano, mas falta-lhe uma plataforma do tamanho das outras para o apresentar. Ele quer ajudar, mas é-lhe dito que “o debate está polarizado”. O Moderado pergunta: mas alguma vez não esteve?


O comediante inglês John Cleese – figura maior dos lendários Monty Python – explica quem são aqueles que olham para o Moderado como um inimigo mortal. Os seus inimigos são os que se querem sentir sempre bem, reclamando para si toda a bondade do mundo. Curiosamente, tais campeões da Verdade tendem a ser socio-politicamente extremistas. Para o extremista da Esquerda radical, o Moderado é um cobarde que não está verdadeiramente comprometido com os valores da Revolução; é um ignóbil traidor do movimento e provável “facho”. Enquanto que para o extremista da Direita radical, o Moderado é um cobarde que não está verdadeiramente comprometido com os valores da Tradição; é um ignóbil traidor do movimento e provável “comuna”.


A resposta do Moderado é tudo menos ousada. Impossibilitado pela sua consciência de partir para um ataque da mesma natureza, ou sequer de se colocar num patamar divino, o seu único argumento prende-se ao mísero facto da desvantagem dos seus opositores ser histórica, mas por isso mesmo, olvidável: eles nunca foram capazes de resolver quaisquer problemas.


Presumivelmente, estarão à procura da novidade que estas linhas até agora vos trouxeram. Nenhuma, concedo. Apelar à moderação é uma constante da nossa sociedade civil. Até as marcas de cerveja o fazem. De outra coisa não se tem falado; e mesmo quando não se fala nisso, acaba-se a falar nisso. Ora, isto não é um apelo à moderação. É uma certidão de óbito. Escrevo porque é minha convicção que já não se encontram Moderados entre nós. Foram mortos pelos extremos que envenenaram o status quo. Paz às suas almas.


Não quero deprimir ninguém. Acredito na ressurreição de tal criatura agora extinta. Mas actualmente não a vejo, por muitos laivos de moderação que alguns possam querer demonstrar. Contaram-me que andaram por aí uns belos espécimes do Moderado, alguns até em Portugal, e cuja semente carece de maior plantação. Partilharei dois dos que encontrei, ambos tão recentes que parece impossível que não tenham tido maior protecção da autoridade competente: o povo que escolhe os seus representantes.


O primeiro Moderado que encontrei é o sociólogo e jornalista francês Raymond Aron. Ao longo de uma carreira que andou de mão dada com o século XX, Aron era apreensivo quanto àqueles que caíam sistematicamente numa só categoria confundida com integridade, sendo capaz de se afastar de todas as ortodoxias reinantes do círculo intelectual francês – Marxismo, Colonialismo, Existencialismo, Capitalismo burguês, Gaullismo e Anarquismo – acabando isolado e marginalizado por todos os seus contemporâneos. O povo abandonou-o e preferiu entregar o Nobel – e o reconhecimento eterno que daí adveio – ao sedutor Jean-Paul Sartre. O Moderado Aron, já em fim de vida, resumiu-se assim:


“Claro que não é agradável ser atacado por todos os lados. Eu sou por natureza um homem da Esquerda, mas tenho sido rigoroso ao desafiar os seus clichês. Ao fazê-lo, proporciono satisfação à Direita, mas a mesma desconfia da minha intenção. Seria tão mais fácil concordar com os meus colegas intelectuais, mas esse nunca foi o meu objectivo. Sartre seguiu as tendências e mantém-se na moda. Eu tenho tentado manter-me verdadeiro.”

O meu segundo Moderado é português e foi líder de um partido político que antigamente era conhecido como Centro Democrático Social. Penso que já não andarão por aí. Falo de Francisco Lucas Pires, extraordinário Ministro da Cultura e primeiro vice-presidente português do Parlamento Europeu. Tal como Aron, o Moderado Lucas Pires considerava-se um homem de Direita, mas com uma alma de Esquerda. Chamava por uma Direita conquistadora de liberdades, e não herdeira de um passado autoritário, que olhasse para a frente sem medo de uma revolução. Chamavam-lhe sonhador, ignorando a sua constante acção. Perde as eleições legislativas de 1985 para Aníbal Cavaco Silva, com tudo o que isso veio significar na construção do Portugal Contemporâneo. Se há algo que este texto possa dar, que seja a recomendação do documentário “Francisco Lucas Pires – Ao Princípio não era o Estado, era o Homem”.


Como nota final, deixo a razão pela qual acredito que o Moderado está morto. O Moderado foi morto quando perdemos o controlo da palavra “Tempo”. Pior fizemos quando cremos que o seu sinónimo é a palavra “Presente”. Por conseguinte, o Moderado, que vive da prevalência do Tempo sobre a resolução de problemas presentes, deixou de ter argumentação suficiente para abraçar quaisquer das nossas exigências, fartas de compromisso. Queremos tudo resolvido agora, à nossa maneira e sem mais demoras. Já esperámos tempo suficiente. Qual período de transição?

O debate é transformado em lucro imediato, produzido com palavras afiadas que rasgam a reputação de todos os intervenientes. É bizarro pensar que o Moderado seria hoje alguém verdadeiramente disruptivo. Mas resta-me esperança, pois tanto as palavras como os seus sinónimos, ainda nos pertencem. É um controlo que a Democracia nos dá. Retomemo-lo e voltarei aqui para escrever uma certidão de nascimento.


P.S.: A figura do Moderado não tem quaisquer bases autobiográficas. O Moderado tem tanto de mim como de qualquer leitor deste texto. Se existe tal ser perfeito, estará certamente ocupado a salvar o Mundo ou a estudar para os seus exames, e sem tempo para andar a partilhar a sua moderação privilegiada e enfadonha nas redes sociais.

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