De Teresa Blanco
“Na medida do Impossível” leva-nos numa viagem contada por médicos e trabalhadores humanitários da Cruz Vermelha e Médicos Sem Fronteiras, de todo o mundo e para todo o mundo.
Sem nunca revelar os verdadeiros locais de missão, ou nomes das personagens das histórias, Tiago Rodrigues transporta-nos para o Impossível – lugares de guerra, de fome, de violência e destruição. Durante toda a peça, somos confrontados com histórias que são um choque de realidade entre o Possível - o nosso mundo seguro, em paz e harmonia - e o Impossível – esse mundo onde parece inacreditável o que lá se passa.
Há uma semana fui ver este espetáculo na Culturgest. Tiago Rodrigues é ator, dramaturgo, encenador e Diretor do Festival d’Avignon desde 2022. Não conhecia o seu trabalho, mas fiquei muito surpreendida e movida com a qualidade do espetáculo. Desde a sua premissa, aos atores escolhidos, à música, até ao cenário e luzes.
Este é um daqueles espetáculos que nos abre os olhos e faz sentir um desconforto saudável de pensar: “Tenho mesmo muita sorte!”.
Sou privilegiada, vivo num país pacífico, com recursos, e não consigo imaginar um dia estar perante um cenário de guerra e total caos. Mas é exatamente isso que nos relembra o autor com uma das frases do texto, algo como: “Não nos esqueçamos que o Impossível já foi Possível, e que o Possível pode muito rapidamente tornar-se o Impossível”.
Penso que, nunca tanto como agora, foi relevante este tipo de reflexão. Num mundo que já viveu tantas guerras, desastres, fomes, crises, sinto cada vez mais que, como Humanidade, não aprendemos.
O espetáculo de Tiago Rodrigues mistura, entre outras, as línguas francesa, inglesa e portuguesa. Conta com a interpretação da atriz suíça Natacha Koutchoumov, a atriz portuguesa Beatriz Brás, e os atores franceses Adrien Barazzone e Baptiste Coustenoble. A pautar as duas horas de espetáculo, temos o músico e, neste caso também compositor, Gabriel Ferrandini. A música ao vivo acompanha o contexto das histórias que nos são contadas, e sublinha as circunstâncias duras e cheias de incertezas em que se vivem no Impossível.
Uma das histórias que mais me marcou é talvez uma das mais evidentes provas da racionalidade e frieza inerentes à profissão humanitária.
O episódio contava como um médico estava em missão e se deparou com uma decisão de vida ou de morte – literalmente. À sua frente estavam cinco crianças que precisavam de uma transfusão de sangue, mas tinha apenas um saco de sangue para o fazer. Uma criança tinha 8 anos, havia duas crianças de 5 anos e duas de 2 anos.
Aqui, teve que pensar na idade e condições das crianças. O raciocínio foi algo assim: das cinco crianças, as duas de 2 anos tinham probabilidades de sobreviver mais dois ou três dias, e era expectável que, entretanto, chegassem mais sacos para a transfusão. Muitas crianças naquela região do Impossível morrem antes dos 5 anos e, por isso, tendo ultrapassado essa idade, a criança de 8 anos tinha, estatisticamente, mais probabilidades de sobreviver. Para além disso, a família investiu mais na sua saúde para ter chegado até ali, pelo que o médico acabou por tomar a decisão de fazer a transfusão à criança de 8 anos.
Assim contado, parece algo chocante. Mas a história demonstra precisamente uma ideia que ouvimos no início da peça, uma ideia fria, mas realista.
A ideia de que nenhum de nós (no caso, os profissionais humanitários) é capaz de salvar o mundo e, por isso, tem que aprender isso desde cedo.
Aquilo que nos dizem os médicos e trabalhadores dessas organizações é que não se trata de salvar o mundo, mas sim mudar vidas. Trata-se de tomar decisões, com o tempo e os recursos existentes.
Apesar da dureza destas histórias, também somos surpreendidos com narrativas de esperança e superação. Lembro-me da história de um ex-médico do Impossível que se encontra num campo de refugiados e, sem possibilidades de exercer a sua profissão até chegar ajuda humanitária, se dedica à jardinagem e leva sempre consigo um vaso de hortelã para todo o lado.
Do meu cantinho confortável, Possível, tenho uma grande admiração pelas pessoas que passam por momentos tão inacreditáveis e, ainda assim, conseguem encontrar o bem nas pequenas coisas.
O espetáculo de Tiago Rodrigues foi apresentado na Culturgest como fim de uma digressão de dois anos por todo o mundo. Embora tenha terminado assim a sua digressão, pode-se assistir a uma versão gravada desta criação, através da RTP Play: https://www.rtp.pt/play/palco/p11390/e718537/na-medida-do-impossivel.
São poucos os espetáculos em que não tenho alguma crítica a fazer – ou pela duração, ou pelas luzes que estavam um pouco off, pelo cenário que não mexeu comigo, ou mesmo pela performance dos atores.
Neste espetáculo, achei que houve um enorme equilíbrio entre todos os fatores. Equilíbrio esse que permitiu criar uma experiência muito enriquecedora, que sem dúvida lembrarei e, inevitavelmente, usarei como termo de comparação...!
Estou certa de que vou seguir os próximos projetos de Tiago Rodrigues, confiando na relevância dos seus temas e novas perspetivas trazidas. Faço um apelo para que espreitem o espetáculo através do link deixado acima, e que também sigam as novas aventuras deste artista.
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