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"Not", as razões que o coração desconhece

Este ser todo racional, senhor de si próprio, inventor da linguagem, descobre nos seus sentimentos últimos os lugares onde faltam razões e palavras


Às vezes, aparecem bandas que nos fazem voltar a acreditar no poder transformador da música, letras que nos mostram o caminho para a redenção e vozes que, de tanta pujança, nos fazem crer ter a vida toda nelas. Os Big Thief foram, no ano que findou há semanas, essa banda e tiveram na sua vocalista, Adrianne Lenker, essa voz revolutiva.

A dado momento, no seu mais recente álbum Two Hands, a banda tenta responder a uma série de perguntas com que os artistas se têm entretido durante séculos. “Porque amamos?”, “Porque odiamos?”, “Porque sentimos?”, tudo isto é abordado em pouco mais de seis minutos na canção do ano, Not.

Not mostra desde cedo ao que vem. Abre com uma guitarra nua e crua porque, afinal, quem já amou – e quem ama –, quem já odiou – e quem odeia –, quem já sentiu – e quem sente – sabe que estes assuntos só podem ser gritados dessa forma, como se as nossas forças fossem expirar depois de tudo dizermos. Nos seis minutos que se seguirão, Adrianne concentrará na sua voz todas as nossas vozes, de tal maneira que todos poderíamos ser a primeira pessoa destes versos.

A guitarra inicia a música, mas Lenker não se fica, não a deixa respirar, começa imediatamente a cantar porque o que tem para dizer – o que tenho para dizer - não pode esperar nem pelas primeiras notas de um instrumento. Tem de ser dito assim, agora.

Amo-te, pois, não por essa energia que corre em ti nem pelas linhas marcadas na tua cara, essa boca, essas sardas, essas cores que agora vejo em todo o lado. Não te amo por ver no tecto do meu quarto o que antes só via no céu, nem pela tua forma que imagino em todos os cantos. Não te amo pelo teu cabelo preto ao vento, nem pela tua voz que não me canso de escutar.

E a voz da vocalista vai crescendo, e a guitarra não pára.

As estrofes dão lugar ao refrão, e lembrei-me que também não te quero pelo teu cheiro espalhado pela casa, nem por aquela vez que vi a maior beleza do mundo no meio da multidão, nem sequer pelo calor da fogueira que me faz pensar em ti. Os planetas a girar, como se tu fosses o princípio e o fim da História, o apetite perdido e ganho de novo: por nada disto te quero. Fazes-me muita falta, mas esquece a pele pálida da tua coxa, os teus olhos e a tua respiração acelerada. Quero-te perto de mim, mas não por isto.

E a voz já não canta, grita, esmaga, exala tudo sofregamente, com toda a urgência, porque o que sentimos – o que sinto – não pode esperar mais. A guitarra está de tal forma distorcida que me trespassa a alma e lembro agora vividamente que, depois de tudo, tu saíste, foste embora e me deixaste.

O refrão toma mais uma vez o lugar das estrofes, e não gosto agora do teu cheiro espalhado pela mesma casa e quero esquecer aquela vez que vi a maior beleza do mundo no meio da multidão e vou apagar finalmente a fogueira porque não quero mais pensar em ti. Cessem os planetas de girar. Não é por isto que te odeio, mas peço que pare tudo de imediato.

E as palavras estendem-se agora um pouco mais e reparo que não te consigo negar nem a tudo o resto sem também lembrar que te amo, embora não pela vida, nem pela morte, nem pelo tempo que passámos juntos; que ao mesmo tempo te odeio, mas não pelas mentiras, nem pela cama vazia, nem pelo espaço que ficou por ocupar; e que olho para o começo de tudo, para uma nova multidão e para a fogueira novamente acesa, e nem por estas coisas me faltas.

E a voz parece que vai explodir, está agora em todo o lado, a bateria ganha força, os acordes continuam e já só conseguimos cantar e sofrer em conjunto com Lenker.

Not é genial porque cria o paradoxo da negação: na tentativa de responder às perguntas últimas sobre quem nos faz sentir, a canção nega que seja apenas por alguns aspectos ou pormenores. No entanto, tudo isto se torna tão palpável e visível que é impossível afirmar que sentimos assim sem lembrarmos todas as pequenas coisas à nossa volta que aceleram o bater dos nossos corações.

A guitarra continua a penetrar-nos a alma bem depois da vocalista cessar de cantar. No fim de tudo, exaustos, doridos, eufóricos, as perguntas mais essenciais da nossa vida, para as quais nos prometeram respostas, não deixam de ser apenas isso: perguntas tão difusas como o som distorcido. É aqui que a banda volta a ser superlativa: este ser todo racional, senhor de si próprio, inventor da linguagem, descobre nos seus sentimentos últimos os lugares onde faltam razões e palavras.

Voltamos a ouvir tudo de novo e relembramos que amamos, que odiamos, que sentimos a falta – que te amo, que te odeio, que me fazes falta - não por essa forma que tens, nem por essa energia que trazes, nem por essa ausência que sinto, nem, na verdade, por nada; mas porque, ao fim e ao cabo, tu és o meu tudo em todas as coisas.

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