A esperança com que a minha avó foi vacinada, apesar de tantas dúvidas, veio combater a solidão. A fé que a minha avó tem naquele líquido de 0,3ml, vai permitir uma abertura regulada do país.
Crónica de Beatriz Mirão
Quando eu era pequenina ia para lá a dormir, sentindo o cheiro, o barulho, o ambiente. Sabia que os desenhos animados estariam milagrosamente ligados uns minutos antes da minha chegada, sabia que as torradas em pão de forma estariam carinhosamente alinhadas e barradas com a Becel que a minha mãe proibia em casa. Sabia isto tudo e chegava lá, meio abananada de uma viagem cheia de curvas, onde depositava o meu corpo naquele sofá. Abria os olhos para dizer que me doíam os ouvidos, a garganta ou inventava outra coisa qualquer sob a pressão de poder passar o dia em casa dos avós.
Vivo na mesma casa desde os meus três anos, rodeada pela minha mãe, pelo meu pai e pelo meu irmão. As viagens para ver os meus avós consistiam em dias inteiros de saudades por cumprir, risos com primos e almoços de barriga cheia. Ir para casa dos avós era uma aventura de um dia, dois dias, três dias e um reaprender de rotinas novas quando voltava a casa. Casa onde não há Becel, não há refrigerante de laranja ao almoço, não há pão de forma, não há salsichas com ovos, porque enfim, simplesmente não há. Infelizmente ou (muito) felizmente, há coisas que têm lugar próprio e que não se movem de sítio.
Os avós que curavam todas as minhas doenças e que me metiam açúcar no leite são assim. Não se movem de sítio, nunca os vi fora dali. Eu que já viajei por aí, eu que já aprendi umas quantas línguas, eu que nunca paro, eu que vivo na inquietação de procurar, eu que não encontro lugar para pousar tudo, eu que vivo nesta vida que é obrigatoriamente para ser vivida, nesta aflição de estar sempre a mover-me de sítio, fico na felicidade de os ver sempre lá, no mesmo sítio, preenchidos por aquele seu mundo que nada abala porque casa é casa, e a Becel é sempre comprada no mesmo sítio, tal como o refrigerante de laranja, as salsichas da lata e as galinhas, enfim, essas vão mudando de poiso.
A minha avó ligou-me no outro dia e a meio do teletrabalho, expliquei-lhe que lhe ligava depois, quando tivesse tempo, no futuro, depois, algures nessa semana. E liguei. E ela contou-me. Contou-me que finalmente tinha chegado o dia em que via um pouco de esperança. A esperança que vem dos alemães, dos chineses e, se calhar, dos russos. A esperança que vai trazer mais visitas dos netos, mais Natais e um pouco mais de Mundo, para lá da estrada que divide a casa da minha avó e a da vizinha.
A esperança com que a minha avó foi vacinada, apesar de tantas dúvidas, veio combater a solidão. A fé que a minha avó tem naquele líquido de 0,3ml, vai permitir uma abertura regulada do país. A confiança que todos precisamos está ali depositada, na ciência, contra o vazio, contra o inglório barulho da televisão.
Não pode haver contradição na procura por esperança. Sujeitarmo-nos à ignorância de querermos a mudança, de confiarmos nos estudos de quem já muito estudou, é o caminho para os meus avós e para mim.
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