Lisboa Clichê, Daniel Blaufuks
de Joana Soares
Caros leitores, depois de um começo de ano atribulado fechamos o mês de janeiro com um novo compromisso: todos os últimos domingos de cada mês iremos desafiar-vos a visitar uma exposição diferente, mesmo a tempo de aproveitarem a gratuitidade dos primeiros domingos do mês seguinte - prática frequente em vários museus e espaços culturais do país.
Prometemos exposições para os culturalmente inconformados, para os que acreditam na democracia da cultura, para os que procuram inspiração ou um antídoto à monotonia dos dias, para os que nunca se cansam de convencer amigos e familiares a aproveitar “o dia em que é grátis” e para os que vão sem pensar duas vezes… porque mais vale sós do que conformados.
E porquê domingo, perguntam vocês? Obviamente porque rima com cachimbo e nos transporta para a obra do pintor surrealista René Magritte, A Traição das Imagens (1929), onde além de um cachimbo se lê uma frase escrita à mão, em tom de provocação: “isto não é um cachimbo”. Com esta obra, Magritte aborda a questão da representação das imagens, sugerindo que o que vemos é meramente a representação de um cachimbo e não o objeto em si mesmo.
E não será este um dos propósitos da arte? Convidar-nos a pôr de lado o que sabemos e a ver o mundo com outros olhos, como se o víssemos pela primeira vez, livre de preconceitos?
Para dar início a esta rubrica selecionámos a exposição temporária Lisboa Clichê, do fotógrafo, cineasta e artista plástico alemão Daniel Blaufuks. As cerca de 80 fotografias a preto e branco distribuídas pelas cinco paredes do Pavilhão Preto, cujo chão faz lembrar a calçada portuguesa, transportam-nos para uma Lisboa do final da década de 80 e início dos anos 90 que Blaufuks imortalizou. Esta amostra é representativa de um universo de mais de 300 fotografias, publicadas pelo artista nas suas redes sociais durante o primeiro confinamento, que deram origem à página de Instagram @lisboa_cliche e ao livro editado pela Tinta-da-china, em outubro deste ano.
Este é o verdadeiro ex-libris da exposição, um livro que nos prende ali, ao centro da sala, e nos impede de parar de folhear em busca das memórias expostas na parede.
Pelo caminho vamos descobrindo poemas de Al Berto, Adília Lopes, Mário Cesariny, Eugénio de Andrade, Fernando Pessoa, Sérgio Godinho e tantas outras inspirações que, lado a lado com outros textos e fotografias, têm o poder de nos envolver no retrato intimista desta Lisboa que Blaufuks criou para nós.
Um ambiente cinematográfico carregado de referências que se foram perdendo com a cosmopolitização da cidade, por onde passaram figuras públicas que Blaufuks teve oportunidade de fotografar como Natália Correia, Ana Padrão, Cavaco Silva, Laurie Anderson e Leonard Cohen, e círculos de amigos da vida privada do artista. Nas paredes identificam-se néons de cinemas históricos que entretanto encerraram, teatros, circos e pastelarias, casas de pasto, piscinas municipais e estações de comboios. Há ainda registos das noites no Frágil, das bandas portuguesas de rock (João Peste e Pop Dell’Arte, Mler Ife Dada), da azáfama do Diário de Notícias e das cabines telefónicas que pautavam encontros.
De Blaufuks a Magritte regressamos ao tema da rubrica, considerando o termo clichê nas suas múltiplas representações. Se por um lado, se refere à técnica fotográfica mais demorada que antecede o instantâneo e o digital, por outro, leva-nos para lugares comuns, frases feitas e banalizações que, por algum motivo, damos por nós a repetir, sem conseguir evitar. Talvez por isso Blaufuks o tenha escolhido, pela nostalgia de um tempo que lhe foi tão especial. Como podemos ler na descrição desta sua fotografia na página de Instagram do projeto “Eu que não sou mais eu, mas que já fui eu e que ainda sou eu mas que jamais voltarei a ser este eu, embora ainda o seja também”.
Lisboa Cliché pode ser visitada até ao dia 27 de fevereiro no Museu de Lisboa - Palácio Pimenta. O bilhete dá acesso a outras exposições e jardins do museu, com destaque para o Jardim Bordallo Pinheiro, um pequeno lago em frente ao quiosque e muitos, muitos pavões. A entrada é gratuita aos domingos e feriados até às 14h. Não é um Cachimbo, é Arte ao Domingo.
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