As Bravas, Fotografias de Paulo Pimenta, no Museu Calouste Gulbenkian
[Cartaz da Exposição, cedido pela Fundação Calouste Gulbenkian. Fonte aqui]
de Joana Soares
Caro leitor, devo confessar que, à medida que esta rubrica avança no tempo, me tenho vindo a aperceber de que quando visito uma exposição com o intuito de a recomendar para o mês seguinte, dou por mim a querer escrever sobre outra alternativa no mesmo espaço cultural. Curiosamente, têm todas em comum o mesmo suporte, a fotografia, sobre artistas que até à data desconhecia.
Da primeira vez, visitei sozinha a Lisboa Clichê, de Daniel Blaufuks no Palácio Pimenta, depois na companhia do meu pai descobri Guerra Guardada, no Museu do Aljube Resistência e Liberdade e, desta vez, estava decidida a visitar a exposição Moldada na Escuridão, de Hugo Canoilas, com duas amigas dos tempos de liceu, mas acabei por me render novamente à fotografia.
A instalação imersiva, sensorial e colorida de Hugo Canoilas, apresentada numa sala escura, é o resultado da investigação sobre o Oceano iniciada pelo artista em 2020, numa alusão ao que podemos encontrar nas profundezas desconhecidas do fundo do mar - com um toque de sensibilização para o impacto da intervenção humana nestes ecossistemas. Já o título, inspira-se no estudo científico de Rachel Carson, The Sea Around Us (1950) “que narra de forma poética a formação do oceano, berço da vida na Terra, e é publicado no catálogo que acompanha a exposição”, com curadoria de Rita Fabiana.
Confesso que esperava uma instalação mais interativa com material para esmiuçar, mas aprofundar a profundidade é uma arte que ainda não domino. Resta deixar-nos envolver pela sensação de começar o domingo de manhã numa sala escura, que sabe a acordar e a adormecer ao mesmo tempo, para sairmos com a receptividade que a exposição mesmo à nossa frente nos exige.
Em conversa entre amigas percebemos que procurávamos estímulos diferentes na arte. Se, por um lado, houvesse quem procurasse arte abstrata para evadir a mente da dimensão relacional e psicológica de lidar diariamente com pessoas, por outro, havia quem preferisse arte imersiva para mergulhar em universos mais subjetivos do que os números ou a contabilidade.
Quanto a mim, senti-me atraída pelas fotografias de pessoas reais, pelo seu lado humano e pela narrativa aos olhos da lente de quem as quis contar, mesmo ali à minha frente. “Quem seriam estas pessoas? Que histórias contavam as fotografias? Que quis transmitir o fotojornalista nesta sequência e como foi parar àquele lugar?”.
Talvez seja esta espontaneidade, que nos encontra sem a termos pedido, que me fascina. Talvez não passe da atração pelo contraste entre luz e sombra, da relação quase conflituosa entre pormenor e perspetiva, da simplicidade das paisagens e do belo, dos olhares intrigantes que nos devolvem algo que nos é familiar…
As Bravas, Fotografias de Paulo Pimenta, foram naquela manhã de domingo uma lufada de ar fresco. A exposição celebra várias mulheres, forças da natureza, que iluminam o átrio cobertas de flores secas e coloridas a condizer com os seus sorrisos rasgados e com as rugas das voltas ao sol e do trabalho duro do campo. São mulheres da serra do Marão que “cantam para espantar a solidão dos dias”, como tão bem retrata a “Canção das Bravas” e outras cantigas disponíveis no site e através de QRcode. Desta canção destaco a seguinte estrofe e desafio-vos a visitar a exposição para ler o poema na íntegra a que, certamente, muitas mulheres não ficarão indiferentes:
“Deixai cantar estas bravas
Não lhes travai o cantar
Tantas vezes cantam elas
Com vontade de chorar
Queremos a igualdade
Estas bravas são mulheres
Lutando no dia-a-dia
Serás o que tu quiseres”
Maria da Graça Mendes (87 anos) aparece com uma foice numa das fotografias. Na legenda pode ler-se “Vive sozinha num lugar da aldeia onde não mora mais ninguém. Por isso, aquilo que mais adora é estar no centro de convívio com as amigas”. Maria Ribeiro (85 anos) e Maria da Glória Ribeiro (62 anos) aparecem abraçadas no lusco-fusco do rio, com a legenda “As suas vidas foram passadas no rio, enterradas na água, de verão e de inverno, para apanhar o minério”. Ana Miranda (82 anos), de camisola azul que contrasta com o galo que leva ao braço, remata “Andei descalça até me casar”.
À medida que me deixava embrenhar pelo universo de As Bravas, ocasionalmente era visitada por flashbacks do documentário Blue Rose (Olya Korsun, doc., Rússia, 2020, 53’), a que tive oportunidade de assistir com a presença da realizadora, no festival de cinema Indielisboa (2021).
Nas palavras de Miguel Valverde, o documentário engloba “todas as facetas possíveis de abordar o sentido cromático de uma flor” e sabemos que esse cromatismo tem implícita a beleza efémera de algo que é belo enquanto dura.
Trata-se de um “documentário em estilo de ensaio visual” onde “seguimos, com Olya Korsun, capítulo a capítulo, uma narrativa que nos mostra um arquivo pessoal, um mercado de flores, a plantação e a sua produção ou um inquérito mais científico. Temos a sensação de um puzzle que se vai completando com zonas cada vez mais expostas, completas e complexas”.
Lembro-me de um capítulo em que se celebrava uma festividade de um outro país e a tradição pressupunha que os habitantes se vestissem com plantas e caminhassem assim cobertos pela aldeia. Como se se tivessem fundido com a natureza.
Neste caso fundimo-nos com as histórias das pessoas que fazem este lugar, onde o simples facto de as poder representar e reconhecer é um privilégio e uma lição de vida. Em conversa com as minhas amigas falámos nos desafios de lidar com a pressão externa da vida adulta, quando já temos tanta pressão interna cá dentro.
Saber o nosso valor e navegar independentemente dos limites é o segredo que estas “Bravas” já devem conhecer de cor. No fim ou no início, dependendo de onde começámos, vemos a sombra da bravura estendida ao sol a secar. O ensaio com o grupo do centro de convívio de Olo (em Amarante) revela uma fotografia em que estas mulheres, individual e coletivamente, penduram roupa branca e erguem os braços em sinal de conquista (ou será de rendição?), de um fado cantado aos olhos de Paulo Pimenta.
O fotojornalista do Público galardoado por prémios e conhecido por retratar entre outros, os domínios da justiça (Podcast Dentro) e da cultura (agente cultural, que fotografou Pina Bausch) é o verdadeiro criador desta exposição, no âmbito do projeto ENXOVAL – Tempo e Espaço de Resistência, da PELE - Associação Cultural e Social - com financiamento da iniciativa PARTIS, da Fundação Calouste Gulbenkian.
A exposição de Paulo Pimenta tem entrada gratuita e pode ser visitada até 25 de abril, de quarta a segunda, das 10:00 às 18:00, no Átrio da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. https://gulbenkian.pt/agenda/as-bravas
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