“(...) era a cave sombria onde se penduravam os fumeiros, eram as tarimbas em que se estendiam as maçãs da porta da loja. E era uma vida nisto. Ciclo após ciclo, sem necessitar de pousio.”
Crónica de Joana Garrido Amorim
Estudante de Economia, FEP
Ilustração de Francisca Faria
Estudante de Pintura, FBAUL
Em pequena, era um diabrete. Havia gosto em dizer-se entre pais, entre família, entre amigos dos pais. É recorrente os adultos gostarem de fazer conversa sobre os mais desprotegidos para empatarem as ocasiões, porque não é lá com eles, e os miúdos pouco entendem.
Contrariamente ao que sou agora, não era muito de estar confinada. Usufruía bem da liberdade, gostando de a sentir.
Passava muito tempo em casa dos meus avós e era lá onde as tais conversas entre adultos ganhavam sentido, porque tinha muito ao meu dispor. Pegava nos coelhos pelas orelhas, dava uma de jardineira e cortava arbustos às escondidas, apanhava folhas das árvores e vendia-as como se fossem peixe, fazia de conta que descansava no final do almoço e, quando sentia que não tinha ninguém por perto, ia à gaveta proibida - a que escondia todos os segredos, a que não podia tocar, porque me diziam que ia estragar ou deixar dedadas- a das fotografias. Nesses momentos era um regalo, tocava em tudo, ninguém sabia, e via os segredos dos meus avós em boa idade, por terras do Alto Minho.
Não é bem sobre isto o que tenciono contar, mas os tempos pedem que se revivam memórias, principalmente as que associámos a algum atrevimento ou a ingénua rebeldia da altura, que agora dá saudade.
As fotografias presenteiam a imaginação e sabem “ser” liberdade. Então, eu imaginava os tempos da altura, o que se fazia, sobre o que se conversava, como se entretinha, tentava reviver as nossas gentes, os seus hábitos, e as suas terras.
Não sou desse tempo, sei o que vou ouvindo, o que ia vendo nessas tais fotografias e que era típico das casas minhotas. Casas estas já raras que, com o passar dos anos, têm sido reconstruídas e se têm perdido, mas que ainda se vêem algumas. Reconhecemo-las pelas chaminés, que são muito altas e espaçosas e que eram necessárias nas cozinhas à época, porque nelas se faziam os cozinhados que alimentavam famílias, com muitos filhos e criados, que se sentavam pelas mesas a comer pratos fumados. O Eça ia achar graça, porque era esse “Arroz de Favas”, com as carnes criadas nos campos, que se dava como alimento. Comidas fortes e resolutas, para que não viesse a fraqueza antes do pôr do sol. A economia era autóctone, local, portanto com pouca margem à poluição. Era dado valor a quem dela fazia trabalho, respeitava a tradição e dava ânimo ao saber rigoroso, cuidador. As economias das terras dependiam delas próprias, para subsistência das suas gentes.
Era o cheiro ao pão broa a sair quentinho, feito do milho do campo, que servia tanto para isso, como para mantimento dos animais; era o azeite do lagar, onde se curtiam as azeitonas e se cantavam modinhas até de madrugada; era a adega, que guardava a colheita do vinho verde tinto que se bebia nas malgas branquinhas, reconhecendo-se facilmente quem delas fazia uso; era a cave sombria onde se penduravam os fumeiros, eram as tarimbas em que se estendiam as maçãs da porta da loja. E era uma vida nisto. Ciclo após ciclo, sem necessitar de pousio.
Fazem-me companhia, na memória, estas fotografias. Apetecia-me reviver-lhes o toque, em casa dos meus avós, porque já não sou o diabrete que ia para lá com dedadas, mas sentir de perto o bulício destes afazeres. Hei de sentir, sei disso.
São contos que estão guardados naquela gaveta, mas que existem dentro de nós, em cada produto que reconheçamos Portugal, típico e regional e que, também, nos compromete o sentido da vida que, neste momento, estão comprometidos devido à paragem nas suas cadeias de distribuição. O escoamento diminuiu, produzem-se menos, a procura é pouco significativa e têm, junto deles, outros produtos semelhantes vindos do exterior, a preços mais tentadores. São os queijos da serra, o mel das encostas das montanhas, os azeites de Trás-os-Montes, os vinhos regionais, os frutos do Algarve e da Madeira, os legumes do Ribatejo, as carnes do Alentejo, os lacticínios dos Açores, os fumeiros do Fundão e de Mirandela, os doces e os pastéis conventuais.
Precisam que saibamos reconhecer-lhes a presença das nossas gentes e que saibamos identificar-lhes as nossas raízes, para que continuemos a imaginar contos, que só nós saibamos contar, para que nunca percamos a euforia do abrir da gaveta, em busca dos sonhos que nos garantam a liberdade.
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