Há, no reino animal, a personificação dos nossos comportamentos mais esquisitos: elefantes celebram funerais, bodes desenvolvem sotaques, abelhas embebedam-se em néctar.
de Afonso Madeira Alves
No entanto, ainda dentro da absurda anormalidade, nada compete com a cymothoa exigua, um pequeno crustáceo que invade as guelras do peixe e segue caminho até à boca, onde se fixa na base da língua. À medida que o parasita suga o sangue do seu hospedeiro, a língua murcha até à necrose e vê a sua função tomada pelo novo inquilino, completando-se o único processo reconhecido pela biologia de um ser vivo capaz de agir como substituto de um órgão de outro. Assim, a cymothoa exigua torna-se na nova língua de um peixe que, embora incomodado, aceita uma “prótese” que o conduzirá a uma morte prematura.
As “costas largas” da União Europeia fazem com que a sua influência seja descrita amiúde como uma relação de parasitismo com os seus Estados-membros, divergindo as opiniões sobre quem será a cymothoa exigua de quem e do quê: a UE parasita sobre as políticas nacionais, infestando as identidades autóctones através de uma super-estrutura hermética sediada em Bruxelas? Ou países dissidentes como a Hungria de Orbán sobrevivem à conta de um hospedeiro que destratam, mas cuja associação jamais quererão quebrar?
Compreendendo o dualismo imanente de um processo de integração executado aos soluços — e assumido desde 2000 pela divisa “Unida na Diversidade” — o projecto europeu rejeitou desde sempre a revolução e a guerra, preferindo assentar-se em reformas progressivas que lidem passo a passo com o conflito inevitável entre ideias e princípios. Na sua génese, a União Europeia assumiu que a sua proposta não se faria de uma só vez. A consequência desse freio é a perpetuação da dificuldade crónica em fundir interesses que estarão à mercê da volatilidade das prioridades internas. Assim, perder-se-á a conta às vezes em que tremeremos perante eleições disputadas entre o candidato pró-europeu e o nacionalista que cospe uma propalada “ditadura europeia”.
Na passada semana, o primeiro-ministro italiano Mario Draghi foi ao Parlamento Europeu defender um federalismo pragmático: duas palavras com tão boa fama institucional que a sua combinação só poderia ser feita perante uma plateia de eurodeputados. No sermão, Draghi disse aos peixes que as instituições europeias se encontram “desadequadas à realidade actual”. Insistindo na reforma estrutural do sistema, apelou à centralização das decisões a nível europeu em sectores vitais como a economia, a energia, a defesa e a política externa.
Para tal, justifica, é necessária uma União Europeia renovada, que se agilize no alargamento a Leste e que reveja as matrizes dos seus tratados, rumo à extinção do princípio de unanimidade e do poder de veto. A ovação final ao seu discurso pareceu indicar que o consenso federalista sairá reforçado, ainda que longe da alçada dos governos no Conselho Europeu — e ainda mais forte pareceu por ter sido declamado por um homo libero de 74 anos que já não busca uma reeleição no seu país.
No mesmo dia do discurso de Draghi, o Parlamento Europeu aprovou uma reforma de cariz federalista do sistema eleitoral europeu. É proposta a criação de um círculo eleitoral único de 28 eurodeputados adicionais em listas transnacionais, a eleição do Presidente da Comissão Europeia num sistema de “candidato principal” proposto através de listas transnacionais e o estabelecimento de uma autoridade eleitoral e de regras comuns para as eleições europeias de cada país.
Porém, tudo isto carece de aprovação unânime por parte dos governos dos Estados-membros. Será aqui que a excitação intelectual é esmagada pelo desânimo da complexidade burocrática e pela resignação da política europeia como a arte do possível face ao eurocepticismo e às soberanias nacionais.
Apesar de reter uma maioria favorável na opinião pública, importa destacar que, na tal arte do possível, surge na UE uma espécie de retenção na fonte que impede que se passe das palavras aos actos: aqueles que são avessos à mudança pelo medo de perderem as suas posições de poder. Por cá, as reacções de maior parte dos eurodeputados portugueses à nova lei eleitoral europeia — e nomeadamente à inclusão de listas transnacionais — revela-nos a falta de interesse em trazer a discussão da política europeia para dentro de portas.
Com excepção da eurodeputada socialista Margarida Marques e do independente Francisco Guerreiro, e fora o eurocepticismo expectável por parte de PCP, BE e CDS (cujo eurodeputado está programado para refilar contra tudo o que contenha a palavra trans), os eurodeputados afectos a PS e PSD votaram contra o artigo que dá ao eleitor um voto verdadeiramente europeu em 28 dos 705 lugares.
As razões apontadas para a tentativa de chumbo vão desde a eleição considerada “muito artificial” de candidatos estrangeiros que os eleitores não conhecem (como se o eleitor português conhecesse Pedro Silva Pereira para lá de 2011), aos eleitos que “não falam a língua dos seus eleitores” (como se Paulo Rangel falasse outra língua que não a do seu partido).
A falsa percepção de que os nossos eurodeputados representam o eleitor português poderá variar do mero equívoco à falta de lembrança de que as últimas Europeias tiveram quase 70% de abstenção — isso sim uma eleição artificial que não falou a língua dos eleitores.
Longe de ser o contexto ideal, a União Europeia e os seus representantes foram tomados pelos holofotes da guerra. Entre pacotes de sanções que exigem uma resposta europeia unificada, e após uma pandemia onde bolsos vazios são virados enquanto se confia na chegada de fundos disparados de bazucas, é insultuoso achar que os cidadãos não devem, ou não querem, ter mais qualquer coisa a dizer.
Não é certo que o federalismo apresente automaticamente melhores resultados para o cidadão europeu (seja lá o que isso for, havemos de ter essa conversa), ou que produza um peso mais significativo da União Europeia entre as superpotências. Mais, tal solução não será compatível caso se escolha um alargamento ansioso a Leste e aos Balcãs. Contudo, entre líderes, entende-se como vital a prática de políticas comuns entre Estados-membros. E até, porventura, alargar uma União Europeia, mesmo que imperfeita, ao restante espaço vizinho seja a única forma possível de se evitar guerras em solo europeu — o grande objectivo de Schuman desde 1950. É uma organização em desarmonia que nos faz crer que, no final do dia, teremos um rol de palavras fantásticas sobre o futuro da UE, mas estaremos condenados a ficar sem saber se as línguas que as proferiram não terão sido tomadas por parasitas.
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