Nascem slogans como “Não podemos ter pobres num país rico!" ou “Comunismo ou Liberdade!”. Votos pró-algo transformam-se em votos contra o que há. Desenham-se eleições sobre resultados definitivos: se o outro ganhar, isto acabou! Esqueçam o curto, o médio e o longo prazo. Não há prazo. Há o lado certo e errado. E é bom que escolham o meu.
Crónica de Afonso Madeira Alves
Imagino-me um peruano que neste domingo irá às urnas votar no seu próximo Presidente. Assumindo que a neutralidade não se afigura como opção viável, - no Peru o voto é obrigatório e votar branco/nulo é uma expressão menor vazia de protesto – os eleitores deparam-se com uma “escolha de Sofia”. Após um final de 2020 marcado por um caos governamental que chegou a ter três presidentes num espaço de uma semana, a corrente eleição vê chegados a uma segunda volta Pedro Castillo, o ex-professor rural sindicalista cuja visão para o futuro modelo do país se prende ao ideário marxista, e a neoliberal Keiko Fujimori, herdeira directa do populismo autoritário de Alberto, o infame ditador dos anos 90 condenado por crimes contra os direitos humanos e corrupção. Assim se perfilam os dois candidatos cujo choque histórico-cultural mata de antemão qualquer ideia de harmonização social de um Estado que se arrasta numa relação tóxica com o seu poder político.
Assim, e no meio de um contexto pandémico que figura o Peru como um dos piores na resposta a nível mundial, considera-se um exercício interessante olhar para estas eleições e observar o comportamento dos designados “indecisos” (ou “moderados” para quem prefere um termo mais vaidoso). Olhemos pela lente daquele que é indubitavelmente a maior personalidade peruana dos tempos modernos, o nobel da literatura Mario Vargas Llosa. Um liberal, outrora socialista, o adversário acérrimo do fujimorismo desde 1990 surpreendeu quando no rescaldo dos resultados eleitorais da primeira volta aproveitou a sua famosa coluna de opinião no jornal El País para apelar ao voto em Keiko Fujimori, um “mal menor”. No texto intitulado “Abismo à vista”, Vargas Llosa compreende o voto dos peruanos, pedindo que não cometam o mesmo erro de novo: votar em Castillo, replicador de Cuba e da Venezuela, significa acabar com a possibilidade futura de salvar a Democracia, enquanto que com a nova Fujimori essa hipoteca não é garantida, apenas ameaçada.
Foi nesta tentativa de entrismo que Vargas Llosa convidou a candidata para uma conferência sobre Democracia a ter lugar no Equador, de forma a que esta jurasse o seu comprometimento pelas normas democráticas. No entanto, Fujimori quedou-se pela participação virtual após a justiça peruana lhe ter negado permissão para sair do país por estar sob investigação do Ministério Público por alegado envolvimento no escândalo de corrupção da construtora brasileira Odebrecht. A sua intervenção via Zoom foi uma mão cheia de nada, de promessas vãs num palco dado a quem sabia que do lado da plateia não estava a sua base fujimorista.
Dias mais tarde, a candidata que até então prometia a instauração de uma “Demodura”, como se por Democracia se entendesse algo fraco, corrompível e inoperacional, assinou um “juramento pelo país”, prometendo proteger o sistema de liberdades vigente. À falta de entendimento histórico sobre como movimentos autoritários juram amor pelo sistema democrático dias antes da eleição, acreditará em Fujimori quem quiser.
Não é fácil moderar os extremos. Como o próprio Vargas Llosa apontou em “A Civilização do Espectáculo”, a pós-modernidade destruiu o mito de que as humanidades humanizam. E no actual jogo político, pouca coisa fará mais sentido do que o recurso à desumanização. Ao ter um povo tão aproximado, de salário mínimo perto do salário médio, nos mesmos meios e vivências, a eficácia pedida a uma campanha eleitoral já não depende somente da identificação de meras diferenças de política pública; e por certo ninguém ficará atento a debates televisivos que não contenham uma única acusação de corrupção, de gestão vergonhosa, de assalto ao bolso do contribuinte, de ditadura. É uma atenção primordial ao gesto e à forma que capturam valores e princípios. Mais ainda, é uma invocação ao que nos é visceral: o ódio irracional aos símbolos e às palavras que nos instruíram a detestar – O que terão sentido alguns quando classifiquei Castillo como sindicalista? E outros quando leram Fujimori como neoliberal?
Ao ver um debate entre Keiko Fujimori e Pedro Castillo, o primeiro impacto é caricatural, mas categórico: ela, vestindo uma camisola da selecção de futebol peruana, representa um nacionalismo bacoco de um amor incontestável pela Pátria; ele, calçando sandálias feitas de pneus velhos, representa a velha luta dos oprimidos, o combate à centralização dos milionários de Lima que desprezam o povo à sua volta. Não há novidade e o debate é pobre em conteúdo. As tribos ganham apelo quando o racional deixa de ter apego. Bater com força no peito enquanto se exclama revolução será sempre mais atraente, não só para quem se sente burlado por um regime que se diz justo, mas também para aqueles que foram ensinados que a política se vive com um fervor advindo de ressentimento histórico. Nascem slogans como “Não podemos ter pobres num país rico!" ou “Comunismo ou Liberdade!”. Votos pró-algo transformam-se em votos contra o que há. Desenham-se eleições sobre resultados definitivos: se o outro ganhar, isto acabou! Esqueçam o curto, o médio e o longo prazo. Não há prazo. Há o lado certo e errado. E é bom que escolham o meu.
Na verdade, não é necessário que nos imaginemos peruanos. O Peru não é uma antecâmara, é a consequência de um deslizamento político que se vende binário. Os eventos históricos que conduziram a um clima de polarização no Peru serão certamente diferentes daqueles que se citam na Europa ou nos EUA. Certo?
Com certeza. Mas a polarização de um eleitorado não respeita factos históricos, apenas recolhe e exacerba os sentimentos que deles resultaram. Daí advém que, moldando-se aqui e ali, os slogans de campanha sejam universais. Lima pode ser Madrid, Portugal pode ser Venezuela. Já não só Paris é digna de Roma, e Roma digna de Paris. A abertura da dignidade na comparação é total, desde que o ângulo narrativo toque nos corações certos.
Por isso imaginemo-nos peruanos, norte-americanos ou espanhóis. Dizem que devemos tomar como exemplo o fenómeno despótico que se sentou na Sala Oval durante quatro anos, e que suportado por uma divisão peçonhenta dos media tradicionais, criou uma vaga que rebentou com o status quo - com o deles e com o nosso. O que funcionou lá, ou o que funcionou recentemente na capital espanhola, funcionará aqui. Exaltou-se a genialidade de quem ganhou rasteiro, aniquilando quaisquer hipóteses de existência de um centro que articule as nuances.
No fim imaginemo-nos portugueses, craques a confundir moderação com brandos costumes, enquanto plagiamos discursos que apontam à “ditadura do Costa”, mas damos palanque único a quem embrulha discurso de ódio entre apelos ao fim da República. A necessidade de incorrer num ambiente polarizado está dependente do desejo que tivermos por espreitar um precipício a que o extremismo invariavelmente leva. Caso adoptado, continuaremos a ter pobres, elites desprezíveis e corrupção sistémica. Adicionalmente, encontrar-nos-emos numa posição em que transformámos o exercício libertador do direito ao voto numa decisão angustiante para os indecisos.
Eu sei que a luta eleitoral é dura, mas promete-me uma coisa: não deixes que no teu coração se acumule rancor. Porque o ódio é cego como o amor; mas o amor é criador, e o ódio faz-nos perder liberdade e hipoteca a esperança.
Pepe Mujica, ex-presidente uruguaio, dirigindo-se ao candidato Pedro Castillo
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