A passividade da União Europeia na gestão da tragédia dos refugiados que atravessam o Mediterrâneo é apenas interrompida por pontuais declarações de boa vontade e de cooperação, mas que não se traduzem em soluções de fundo. Como consequência, o problema arrasta-se.
Quando eu nasci não havia dúvidas. Ele chamar-se-á Baltasar. Gerações de bebés antes de mim tiveram de lidar, bem ou mal, com este nome. E diz-se cá por casa, num tom cómico que não esconde o desconforto da superstição, que os mortos do cemitério certamente se revoltariam se o varão da prole não se chamasse Baltasar. A minha avó usa uma expressão que qualifica bem este processo de transmissão: é uma pesada herança.
Apesar de não existirem provas de parentesco ou semelhanças físicas entre mim e o meu ilustre homónimo, a verdade é que sempre tive um afeto especial pela imagem dos Reis Magos. O Evangelho de S. Mateus não fornece informações quanto ao seu número, apenas refere os três presentes que trouxeram: ouro, incenso e mirra. Com base no número de ofertas, depressa se fixou o número dos generosos sábios. No entanto, é em Roma, nas Catacumbas de Priscila, que surge a primeira representação pictórica destes. Nesta, os Reis do Oriente surgem representados com três cores diferentes, o que veio acrescentar ao episódio da Epifania um novo significado. Baltasar, Belchior e Gaspar, como passariam a ser conhecidos, foram interpretados como embaixadores dos povos dos três continentes conhecidos à época na adoração ao menino, Rei dos Reis.
A Narrativa da Natividade de Jesus é uma das imagens que melhor reflete o carácter revolucionário e igualitário da doutrina que viria a ter um enorme impacto na construção da mentalidade europeia contemporânea. Mesmo para quem não é crente, ou não se revê nas instituições que auxiliam o culto cristão, a mensagem é clara: o Deus em que os cristãos acreditam escolheu habitar junto dos marginalizados. Nas sociedades europeias, hoje muito secularizadas, o cristianismo foi instrumental para repensar a pobreza e retirar-lhe o estigma a que sempre esteve associada. Deste exercício de reflexão compassiva surgiram novas ideologias e uma nova concessão do Estado enquanto protetor dos sectores mais frágeis da sociedade. Contudo, a pobreza retratada no presépio revela uma realidade ancestral que continua a pautar a atualidade: a epopeia dos refugiados.
As marcas do drama diário de milhões de pessoas que fogem da perseguição, da fome e da pobreza podem ser encontradas na cena da Natividade de forma explícita. Começando pelas determinações de ordem burocrática que obrigaram à deslocação de uma família para um território que não a soube acolher, passando à perseguição cerrada e ao subsequente exílio num país estrangeiro, o que a família de Jesus teve de enfrentar continua a ser a realidade quotidiana de muitas famílias em zonas de conflito ou de pobreza extrema. Segundo a Plataforma para os Refugiados, existem cerca de 65 milhões de pessoas deslocadas em todo o mundo, dos quais 22,5 milhões são considerados refugiados. A estatística diz-nos ainda que um em cada dois refugiados é uma criança.
Muitas destas crianças serão como Zain, a personagem do filme Cafarnaum. Um rapaz libanês com “talvez doze anos”, que cresceu numa família destruturada pela pobreza, num meio hostil à infância e que sonhava em emigrar para a Turquia ou para a Suécia, para o país “que for mais bonito” e onde pudesse fazer chichi à varanda sem ninguém se chatear. O riso que provoca esta expressão do desejo de liberdade do pequeno libanês é desconcertante porque interpela o nosso cinismo coletivo face à ingenuidade de uma criança com mais experiência de vida do que maioria dos jovens europeus.
Tendo em conta este cenário, é em crianças e adultos que, como Zain, procuram sobreviver a todo o custo e risco que deposito a minha esperança na renovação dos valores-base de uma sociedade que deve procurar a vida e a esperança e não a morte e o tédio. Quando se discute a violência nos países mais pobres, diz-se amiúde que a vida é menos valorizada nesses espaços. Talvez o poder não a valorize, talvez os media não se interessem, mas os mais perseguidos agarram-se à vida e lançam-se a um fim incerto.
A passividade da União Europeia na gestão da tragédia dos refugiados que atravessam o Mediterrâneo é apenas interrompida por pontuais declarações de boa vontade e de cooperação, mas que não se traduzem em soluções de fundo. Como consequência, o problema arrasta-se. Porém, não é apenas no campo da integridade moral que a União sai fragilizada. No plano político, a falta de uma estratégia conjunta no encaminhamento dos refugiados provoca uma concentração desigual em alguns países, o que serve como arma de arremesso para os partidos e movimentos anti-europeístas, nacionalistas e anti-democráticos promoverem os seus valores xenófobos, nocivos à integridade dos estados e da própria União. Um exemplo claro deste processo chega-nos de Itália, onde Matteo Salvini, il Capitano, como os seus apoiantes lhe chamam, atreveu-se a agradecer publicamente a Nossa Senhora, indiscutivelmente a refugiada mais famosa da História, a aprovação no Senado Italiano de uma lei que aumentou a multa para os navios que aportem na costa italiana sem autorização para um valor que pode chegar a um milhão de euros. A intenção deste instrumento é clara: impedir que os navios das organizações não governamentais que resgatam muitos refugiados da morte certa possam atracar em Itália.
Retomando o tema da quadra, é curioso como boa parte das nossas famílias, herdeiras da tradição que S. Francisco de Assis instituiu em Greccio, ainda se referem ao “montar do presépio” antes do Natal. É uma expressão interessante, pois ninguém se lembraria de dizer “montar uma família”. Infelizmente, agora que se aproxima o dia de desmontá-lo, é mais fácil lembrarmo-nos das famílias que ao longo do ano são “desmontadas”. A nova década que agora começa traz consigo desafios que exigem uma grande coragem e perseverança. Um deles é sem dúvida o desafio do acolhimento dos refugiados e a criação de estabilidade e prosperidade nas suas áreas de origem com o intuito de reduzir o fluxo migratório. Por enquanto, vivemos à revelia da lei universal que qualquer criança conhece: “o ar é de todos (mas só se tiveres passaporte ocidental)”.
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