A Criatura é o símbolo duma época em que os segredos do mundo parecem estar à distância de um link, mas cujo quotidiano é marcado pela incerteza. Representa a procura por uma raiz, por uma identidade popular nestes tempos em que à superfície tudo se vai tornando uniformizado
Crónica de Constança Cardoso
Vivemos numa época bizarra. Ao mesmo tempo que a “diversidade” parece ter sido adoptada como valor supremo, cada vez mais o mundo se resume a monopólios. Não falo apenas da dimensão económica mais óbvia, mas também de cultura. Por um lado, a indústria musical mainstream celebra a diversidade como um valor em si mesmo, por outro, é evidente o processo de uniformização da música “pronta a consumir”. Os mesmos nomes ecoam um pouco por todo o lado, ocupam as grandes estações de rádio, canais e programas televisivos, deixando sem visibilidade quaisquer alternativas, ditando o que é suposto os jovens ouvirem. Por assim ser, cada vez mais é relevante o papel das iniciativas locais que apostam na instrução musical, como é tantas vezes o caso das sociedades recreativas e casas do povo. Para além de serem um espaço de convívio e de partilha de conhecimento acessível a todos, estes projectos costumam enfatizar a valorização da música popular, resistindo à uniformização da música e ao comum preconceito de que o tradicional é “coisa de velho”.
Destas iniciativas locais têm surgido projectos inovadores que não se conformam com esta estandardização e que são uma verdadeira lufada de ar fresco no mundo da música. Tenho em mente uma Criatura em particular, nascida em Serpa em 2014 e à qual quero dedicar este texto.
A Criatura conta actualmente com 10 membros e é, como se define a própria, “um eclético bando de músicos, artistas e gente que se dedica a revisitar a memória popular do território que habita e que a partir dela se propõe a criar música e arte que nasce de outras formas de olhar, sentir e ser a tradição.”.
Conheci a Aurora, primeiro álbum da Criatura, há cerca de dois anos. Andou de boca em boca até chegar aos meus ouvidos. Fiquei imediatamente fascinada com a alma e poesia que os músicos levam nas canções, pela sua essência altamente experimental, mas sempre fluída e, acima de tudo, pelo carácter intervencionista que julgava estar adormecido junto com os sonhos da revolução. Não posso deixar de ouvir na Criatura um pouco do José Mário Branco, do Fausto e, sobretudo, do Zeca Afonso. A voz do Edgar Valente só torna
esta experiência ainda mais assombrosa, uma vez que se confunde por vezes com aquela que ecoa a Grândola Vila Morena desde 1974.
Numa entrevista, disse Gil Dionísio, uma das vozes da Criatura: “A existência do Zeca, do Zé Mário, de um Fausto, de um Adriano, todos eles representam não só a música, representam um ponto de viragem de um país que me dá impressão que está mal resolvido. O país não vive assim tão bem. As pessoas que vivem mal, vivem mesmo mal. Há muita pobreza e se calhar a maioria dos meus amigos tem muita dificuldade em arranjar trabalho e quando arranjam há uma sensação meio apocalíptica de que isto nunca vai dar. Há alguma coisa que não está bem. E há uma dureza qualquer em saber que o Zé Mário ficou conhecido por um “FMI”, e não sei quantos anos depois ainda continua a bater o mesmo problema.”.
A Criatura é o símbolo duma época em que os segredos do mundo parecem estar à distância de um link, mas cujo quotidiano é marcado pela incerteza. Representa a procura por uma raiz, por uma identidade popular nestes tempos em que à superfície tudo se vai tornando uniformizado, mascarando-se, porém, as profundas diferenças que estruturam o mundo. Reencontrar a tradição não significa, contudo, que esta deva ser vivida sem sentido crítico. Numa das canções mais recentes da Criatura, “Da Praxe”, critica-se o perpetuar de certas práticas simplesmente porque assim manda a tradição. A cultura não é estática, flui e molda-se consoante os tempos e, por isso, a tradição pela tradição não pode ser um valor em si mesmo:
eu andei na faculdade porque alguém m’a pagava eu andei na faculdade fiz tudo só não estudava eu até andei na praxe como a tradição mandava
(…)
não te metas se não sabes onde te estás a meter!
O uso dos contrastes será, talvez, uma das características mais interessantes do autodenominado bando. Muito à semelhança do que faz Conan Osíris, a obra da Criatura é um constante balouçar entre a tradição e a modernidade, entre o rural e o urbano, entre a comédia e a tragédia, o individual e o colectivo. É interessante reparar como nos últimos anos têm surgido em Portugal projectos artísticos que se definem pelo reinventar da tradição. Fado Bicha, como sugere o nome, é outro exemplo deste fenómeno entusiasmante que ganha força na música portuguesa. É como se houvesse uma necessidade de diluir as fronteiras entre dicotomias que estão a perder sentido. Cada vez mais a globalização forja uma ideia de um mundo moderno e “de todos para todos”, ao mesmo tempo que torna as fronteiras cada vez mais robustas e palpáveis. O futuro e o “progresso” são evocados par a par com saudosismos de todo o tipo e, nas cidades, convivem jovens que cultivam hortas comunitárias e supermercados onde só trabalham robôs.
De todas as criações da Criatura, O Padeiro (parte I e II) é, para mim, a que melhor retrata esta sensibilidade para o tempo quimérico que habitamos. É também uma canção que creio resumir bem o espírito da banda e, em particular, do seu último álbum, que é “uma ode intervencionista à alternativa de evolução, à necessidade de mudança, à urgência de imaginarmos novos caminhos, sem esquecermos de onde vimos, da memória e da identidade da cultura que nos faz ser as criaturas que somos”.
Na letra, lamenta-se a perda de um antigamente que já não volta, de um padeiro que já não vem a casa no natal, de uma criança que perdeu a magia, de um instrumento que perdeu o propósito. Lamenta-se que certas coisas se percam, mas não é uma canção saudosista, pelo menos não num sentido derrotista ou fatalista. É, parece-me, uma canção que reinventa a saudade, que deseja curar as mágoas passadas e abrir novos caminhos. A letra torna-se ainda mais interessante tendo o Mar e a Saudade um peso tão específico no imaginário português, no qual andam de mãos dadas.
deixa lá tanta saudade que a liberdade também corre em águas paradas
e venha o mar lava-me as águas e cura-me as mágoas reaviva a memória conta-me outra história
que o Padeiro já não vem no Natal.
Para que mais Criaturas ganhem lugar na música e na cultura em geral, é necessário, primeiro, que o amor à diversidade deixe de ser meramente uma bandeira. Este é um projecto altamente inovador, que traz consigo novas maneiras de pensar e sentir a tradição, casando adufes com sintetizadores e cante alentejano com Groove afro-peruano. É algo verdadeiramente original, verdadeiramente único. Esta é a Criatura que vive no submundo da música portuguesa, como tantas outras que por aí andam e que ninguém vê. Há que as procurar, que as ouvir e que as apoiar, principalmente numa época de pandemia em que o Estado tanto as negligenciou.
Há que procurar além da oferta mainstream, não para pavonear uma ideia de superioridade intelectual, mas porque é além desta que está quem tem algo de novo a contar, com narrativas inovadoras e inconformadas e que, ao mesmo tempo, mais precisa de apoio e visibilidade.
Nota da Autora. O colectivo Criatura tem um site que nasceu com o seu último álbum Bem Bonda, onde fazem a divulgação e exposição do seu trabalho. Clica aqui para ficares a par das novidades do grupo.
Comments