Faz já uns anos que me fartei dos part-times clássicos da restauração e comecei a passear cães como alternativa. Uma das coisas boas deste tipo de trabalho: se não fizermos sempre o mesmo percurso, é que nos dá a oportunidade de ir descobrindo novos cantinhos em zonas familiares. Pessoalmente, gosto de deixar que os bichos me guiem para onde os cheiros lhes parecem mais interessantes.
de Constança Cardoso
Foi assim que descobri um pequeno parque onde todas as tardes, sem falta, se juntavam cerca de quinze vizinhos para passear os seus cães. Na verdade, não chega a ser bem um parque, é mais um pequeno jardim com dois ou três bancos. À primeira vista, parece um espaço meio inútil. Não tem balouços para os miúdos brincarem, nem mesas de piquenique, nem estruturas para fazer exercício. É apenas um relvado. Mas o tempo que lá passei mostrou-me o poder que um simples relvado na cidade pode ter.
Ao longo de três anos a passear cães naquele jardim, assisti a amizades a serem formadas, redes de apoio entre vizinhos a serem criadas, jantaradas a serem combinadas… tudo porque havia um espaço, por mais humilde que fosse, que permitia que estas relações se fortalecessem.
Este lugar faz-me lembrar um outro, que já não existe, mas onde tinha muitas memórias bonitas. Em frente à minha casa, no mesmo concelho, costumava estar, até há pouco tempo, uma praça vazia. Tinha sido em tempos uma praça de touros, mais tarde um mercado, e, entretanto, caiu em desuso. Pelo menos oficialmente, pois continuava a ser frequentada pelos seus vizinhos. Quer para soltar os cães, para andar de bicicleta ou para sentar, ouvir música e pôr a conversa em dia com amigos, esta praça tinha sempre fregueses. Claro que, estando em Cascais, à mercê da ganância do seu presidente, não pôde durar muito tempo. Ao fim de cerca de três anos de obras extremamente barulhentas, com constantes cortes de água na vizinhança e inclusive explosões que partiram objectos em quintais da zona (por sorte, sem feridos envolvidos), a antiga praça tornou-se agora um megalómano condomínio de luxo. Obviamente, ninguém foi avisado dos cortes de água, nem das explosões. O mais grave é que o terreno da antiga praça de touros tinha sido cedido à CMC (Câmara Municipal de Cascais) com a condição de ser utilizado para fins públicos.
Comecei a prestar mais atenção ao que me rodeava. A que tipos de espaços eram apropriados como lugares de convívio. Normalmente, são pequenos largos onde não passa trânsito, jardins, parques… enfim, lugares onde há verde ou onde podemos estar tranquilamente a conversar sem o barulho dos carros. Pensemos no verão, por exemplo.
Uma cidade quente sem uma forte presença de árvores torna-se completamente insuportável. Não só porque precisamos de zonas de sombra para nos aliviarmos, como porque a própria transpiração das árvores ajuda a arrefecer o clima.
Nesse sentido, quanto mais árvores uma cidade tiver, melhor. Para além disto e da questão estética, essencial para a qualidade de vida dos habitantes, a presença de árvores é também essencial para a biodiversidade local. Sem certos tipos de árvores e arbustos, a vida de alguns pássaros e insectos polinizadores torna-se impossível. Numa altura em que o aquecimento global e a perda de biodiversidade se vão agravando, é totalmente injustificável o constante abate de árvores e destruição de espaços verdes a que assistimos um pouco por todo o país.
O que pensar, então, da forma como tendem a ser geridas as nossas cidades? O que dizer, por exemplo, dos recentes projectos da CMC que ameaçam destruir alguns dos espaços verdes e de convívio mais amados do concelho? Este tipo de conduta não é novidade para os cascalenses.
Ao longo dos últimos anos, temos assistido à destruição de várias iniciativas populares, bem como de espaços verdes um pouco por todo o concelho, desde hortas comunitárias à Quinta dos Ingleses, com cerca de 52 hectares de área verde. Recentemente, a proposta de alteração do PDM (Plano Director Municipal) de Cascais, por parte da CMC, ameaça ainda mais os últimos espaços verdes e de lazer do concelho. Entre as propostas mais chocantes, está uma que visa construir uma estrada que atravessará o Parque das Gerações, o maior skate park de Cascais, ao meio.
Isto, claro, será o fim do parque, frequentado por centenas de pessoas, entre as quais muitas crianças, que deixarão de estar seguras dada a proximidade do trânsito.
Parque das Gerações, Estoril, Cascais
Esta alteração do PDM, como explica uma carta aberta que tem circulado sobre esta situação, “pretende introduzir numerosas alterações, sendo nítido, na maioria delas, um objectivo comum: a eliminação dos últimos espaços verdes em Cascais, inclusive dentro do Parque Natural, através da sua conversão em solo urbano. Essa conversão permite transformar estas zonas em espaços edificados e urbanizados, algo que aliás tem vindo a acontecer com uma velocidade galopante no nosso concelho, o que põe em causa a Estrutura Ecológica Municipal e que se manifesta tanto no alargamento das zonas urbanas, como na densificação das mesmas.
É esta a deficiência mais grave que afecta toda a proposta de alteração do PDM: a excessiva e injustificada classificação do solo não urbano em urbano, que para além do grave impacto ambiental que provoca, é manifestamente ilegal, conforme apontam igualmente os pareceres das entidades competentes que se pronunciaram, neste caso a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo (CCDR-LVT)”.
Vista aérea da Quinta dos Ingleses, Carcavelos, Cascais
Será possível ter comunidades saudáveis sem espaços de convívio públicos? Será possível criar comunidades fortes se não houver espaços de lazer que os unam? Qual o benefício da alarmante betonização do concelho para os cidadãos? Que consequências trará para a população local a construção de mais empreendimentos de luxo em espaços públicos?
Trata-se de condomínios fechados, com piscinas e zonas de lazer que só são acessíveis aos moradores destas fortalezas modernas, construídas em áreas que antes eram passíveis de serem usufruídas por todos. Num concelho que foi Capital Europeia da Juventude e cujos slogans vão desde charm of the atlantic coast, até “Cascais elevado às pessoas”, a conduta do seu executivo camarário é, no mínimo, vergonhosa.
Desde os pequenos largos e relvados, onde adultos, crianças e animais se juntam para conviver, até aos grandes parques e áreas florestais que são os grandes pulmões das cidades, estes deviam ser grandes prioridades da gestão urbana. Não é aceitável que se continuem a destruir espaços públicos para dar lugar a projectos megalómanos que só beneficiam quem está envolvido nestes negócios. Não é aceitável que o nosso direito à cidade seja sacrificado em nome da ganância de quem nos governa, nem que a nossa biodiversidade seja ameaçada desta maneira. Sem espaços de convívio dignos, sem áreas verdes onde possamos respirar, sem lugares onde possamos conhecer bem os nossos vizinhos, sem parques em que as crianças e os animais possam brincar tranquilamente e em segurança, não é possível ter uma comunidade forte, saudável e capaz de se unir. Antes que as nossas cidades se tornem em club meds gigantes, há que defender os nossos espaços de interesse público, desde o mais humilde jardim, às grandes áreas florestais.
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