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O Elogio da Inutilidade

Atualizado: 15 de mar. de 2020

Vivemos obcecados com o útil. Nos nossos dias facilmente confundimos o útil com o bom. Domina uma mentalidade empresarial, logística – sempre dependente de cálculos. O ímpeto de ter de fazer, de ter de decidir absorve-nos de tal forma que desprezamos fenómenos como a reflexão pela reflexão, como o tempo livre e como o silêncio. Propunha-me a considerar de onde isto vem, e sobretudo para onde isto nos pode levar.

No século XVIII assistimos à vitória das teorias iluministas, racionalistas, que glorificavam as insondáveis capacidades da razão humana – a rainha de todas as potências, a senhora das luzes que triunfava sobre as trevas da ignorância e dos preconceitos.

No século XIX o extremar das visões iluministas conduziu ao surgimento de duas doutrinas de sinal contrário, mas apesar de tudo muito semelhantes – o marxismo e o utilitarismo. Que de algum modo viriam a gerar aquilo que hoje designamos por esquerda e direita.

Com a revolução industrial, a visão das ideologias materialistas levaria ao triunfo da técnica. Com grandes proveitos para o progresso material da humanidade – aumento da esperança média de vida, redução da mortalidade infantil, melhoria das condições de trabalho, criação da chamada classe média, redução do analfabetismo, entre inúmeras outras.

Não podemos contudo negar os perigos da evolução da técnica, associada a uma sociedade utilitarista. Quando o crescimento das capacidades tecnológicas não é acompanhado de um florescimento ético os perigos são imensos. Por outras palavras, Holodomor, Auschwitz, Verdun, Estalinegrado, Nagasaki e Hiroxima seriam impossíveis no século XVI.

O progresso científico permitiu que o Homem fosse vencendo as forças da Natureza. O desvendar das leis da Natureza, a sua compreensão e o seu posterior controlo, não só diminuiu as ameaças do mundo natural, como levou a um verdadeiro empoderamento do Homem. Estas novas potencialidades retiraram os temores em relação à Natureza, no entanto tornaram o Homem na principal ameaça do próprio Homem. Efeito este testemunhado pelo século anterior como tristíssima realidade.

Pelo que é pertinente perguntar – a mentalidade que permitiu os horrores do século XX está superada, ou permanece? Será que a evolução da dimensão técnica está acompanhada pelo fortalecimento da dimensão ética? Como podemos evitar este tecnicismo ameaçador?

Estas questões são cruciais para o momento presente. A apreciação pelo inútil não será seguramente a única resposta, todavia é uma solução que combate frontalmente a ditadura da técnica. É urgente o regresso aos espaços de contemplação e de reflexão que nos levam para fora da consideração do que nos é conveniente. Sobretudo é urgente o regresso à ideia de Belo – por isso é tão importante a Arte, a procura da Arte pela Arte. Não por aquilo que o nos pode trazer, mas por aquilo que é. Não como um meio para chegar a algo, mas como um fim em si. Não para ter mais recursos económicos, nem por instrução pedagógica, nem pela propaganda política – mas do Belo, pelo Belo. Como um fim com valor próprio, como forma de vida, e que por isso mesmo é uma libertação, uma liberdade.

O mais interessante é que dando espaço à inutilidade, não só encontramos resposta para o problema da vida social, como também a nossa vida pessoal ganha respiração e significado. Quando não estamos agarrados somente a considerações de utilidade, de meios sem fim, que fazem da existência um labirinto sem saída. O pensamento utilitarista invadiu os diferentes espaços da nossa vida, é urgente restringir o tecnicismo ao seu lugar.

O regresso ao inútil tem a utilidade de quebrar o império do tecnicismo. Parece um paradoxo, porém talvez não seja assim tão contraditório. Porque é precisamente a insuficiência do ímpeto utilitarista, a sua pobreza e os seus riscos que demonstram a fraqueza e a incompletude desta visão. Sim, foi o utilitarismo que nos demonstrou, por conter em si o gérmen da sua auto-destruição, a utilidade do que é inútil – que o Homem não é só matéria, também é espírito.

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