Desde o início do conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia, o PCP tem sido o centro das atenções na política portuguesa. É compreensível visto que, apesar do partido ter uma representação nacional de 6 deputados em 230, tem sido o único a destoar de posições e análises mais ou menos consensuais. Discussões sobre guerra e crimes de guerra trazem emoções fortes, e aqui não foi exceção.
de Vasco Castro Pereira
Foram sendo feitas várias acusações aos comunistas – e a todos os que não fazem uma leitura da guerra com um dualismo que anda entre Immanuel Kant e a Bela e o Monstro – dizendo que são “caixas de ressonância do Kremlin”, que não são democratas, que odeiam “o nosso modo de vida” e até que devem ser extintos e/ou combatidos da mesma forma que a extrema direita. Sinceramente, nunca dei muito valor a essas leituras, e sempre acreditei que o maior problema do PCP ao longo desta história era de comunicação infeliz… até às últimas semanas, nas quais o PCP votou contra a vinda de Zelensky ao Parlamento Português, ou o seu líder recusou dizer que havia realmente uma invasão, preferindo o termo “operação militar”, entre outras coisas.
Não me interpretem mal, não estou a dizer que aquilo que era mentira deixou de o ser de um dia para o outro. O que quero dizer é que, se antes era bastante claro de que lado estava o PCP neste conflito, nesta tomada de posição, contra uma visita simbólica do Chefe de Estado de um país barbaramente agredido e invadido, agora não é assim tanto. E é uma tomada de posição injustificável naquilo que é a defesa da soberania nacional ou do direito de todos os povos à sua autodeterminação contra a ingerência de impérios.
Tudo se torna extremamente confuso e desconfiável com uma decisão destas e creio que esta minha confusão e desconfiança é a confusão e desconfiança de todos os socialistas que defendem intransigentemente o direito à autodeterminação dos povos e o combate aos imperialismos. E há um padrão histórico, de decisões do PCP nestas matérias, que tem gerado este tipo de desconfiança e tem tido até resultados catastróficos.
Em 1968, os comunistas portugueses estiveram na linha da frente no apoio à invasão do Pacto de Varsóvia, liderado pela URSS, a uma Checoslováquia que procurava reformar e liberalizar politicamente o seu regime socialista, alinhando-se com o imperialismo soviético e levando a uma saída em massa de militantes. Já em Democracia, a segunda grande queda do PCP dá-se em 1991, quando, na União Soviética, há uma tentativa de Golpe de Estado contra Gorbachev, quando este procurava abrir o regime e fazer uma transição do imperialismo e capitalismo de estado, uma clara deturpação dos ideais marxistas, para uma sociedade socialista sem ditadura.
A consequência é uma queda eleitoral considerável (a CDU ficou pela primeira vez abaixo dos 10%) da qual nunca recuperou realmente. Mais de 30 anos depois, custa-me acreditar que o PCP não aprende com os erros e continua a interpretar o panorama político como se vivêssemos na Guerra Fria, mas não só é esse o sinal que dá, como duvido que um terceiro erro deste tipo, numa fase em que os comunistas já têm tido perdas, não seja fatal.
Dito isto, dito tudo isto, não consigo partilhar da felicidade relativamente a esta decadência do PCP e o seu inevitável caminho para o abismo, felicidade essa que vai desde a direita radical, que lá no fundo, no que concerne às posições do PCP, está tão solidária com a Ucrânia como o eleitorado do All Russia, a uma parte da esquerda, na qual me insiro, cuja doença infantil e/ou necessidade patológica de sinalização da virtude impede a focagem nos principais adversários de todo o socialismo.
Não partilho dessa felicidade por gratidão a quem esteve na linha da frente a combater a ditadura fascista enquanto outros andavam a brincar aos marcelismos, mas não me vou alargar nesta parte, não só porque me parece extremamente desnecessário como ainda corro o risco de levar com alguém a falar-me do 25 de novembro e do verdadeiro herói democrata que, durante o 25 de abril, foi para um bar de alterne em vez de tomar a sede da PIDE. Não partilho dessa felicidade fundamentalmente por preocupação. Por uma enorme preocupação que sinto com um potencial desaparecimento do PCP, no que toca às consequências para a esquerda.
À primeira vista isto parece risível porque, volto a referir, o Partido Comunista tem 6 deputados em 230 e está em claro processo de decadência, pelo que acredito que o foco da esquerda não seja esse. No entanto, tenho motivos para estar preocupado. E esses motivos passam essencialmente pelo facto do PCP continuar a ser o único partido do espaço da esquerda portuguesa que está focado, quer programaticamente quer na sua praxis política, nos trabalhadores, nas classes populares, no mundo rural e naquilo que não são apenas minorias oprimidas, mas sobretudo a maioria mais oprimida, que corresponde também ao grupo social mais oprimido de todos – o povo – e oprimido pelo maior e mais perigoso opressor de todos – a infraestrutura económica e o consequente modelo económico vigente.
Apesar do Bloco de Esquerda, com Catarina Martins, ter começado a abordar mais as questões das leis laborais e de grupos de profissionais em situação precária, não deixa de ser um partido fundamentalmente urbano e de causas que, sendo extremamente importantes, não são aquelas que os trabalhadores e o povo precisam de ver na linha da frente como resposta aos seus problemas da vida concreta. A mesma coisa em relação ao Livre, um partido cujo foco eleitoral é nos centros urbanos de Lisboa e cujas bandeiras maiores são o ambientalismo e o eurofederalismo. O PS tem de facto instituição no mundo rural e no mundo laboral, mas é um partido, em contrassenso com a maioria dos outros partidos sociais-democratas europeus, muito mais intelectual do que operário desde a sua fundação, e a consequência natural são interesses de classe que subsistem até hoje e não desaparecem de um dia para o outro.
Ou seja, este é o problema: com o desaparecimento do PCP, a esquerda fica entregue a um PS que, devido a interesses de classe subsistentes, não deixa de ser um partido com um ideário ligeiramente à direita da social-democracia clássica, que terá como vigilância/oposição à esquerda partidos mais urbanos e focados em questões fraturantes. Se não é aqui que os desprotegidos no modelo vigente vão encontrar respostas, então só poderá ser na direita. E a direita a dar respostas, particularmente uma direita com cada vez menos cariz social, implica respostas que ou serão más ou serão péssimas.
A hipótese má é uma espécie de solução mágica na forma de mão invisível e “trickle-down” que, ao desmantelar o Estado social e com uma distribuição económica que acaba por beneficiar sempre os mais ricos, só aumenta desigualdades e torna o nível de vida mais incomportável para quem está em baixo. A hipótese péssima é uma direita populista que fala diretamente aos trabalhadores colocando o ónus em minorias étnicas, na imigração ou na “ideologia de género”.
Esta hipótese já foi testada, mais ou menos acidentalmente, em vários países do Ocidente. O caso francês, bem claro nas últimas eleições, é paradigmático. O PCF tornou-se irrelevante, e a esquerda “madura” ficou entregue aos “progressistas” urbanos como Anne Hidalgo ou Yannick Jadot. A classe trabalhadora, desgastada com as políticas liberais que apenas protegem os grandes grupos económicos, não encontram motivos para apoiar campanhas cujos focos são modelos revolucionários de cidade ou inclusão, e passam a ver a solução na liderança carismática de Marine Le Pen, que apenas procura colocar franceses contra franceses de acordo com a sua etnia, sendo que o seu resultado só não é mais expressivo devido ao fenómeno Jean-Luc Melenchon, que na prática também segue o mesmo dualismo populista “nós vs eles” (“elites” no lugar de “islâmicos”) em vez de apresentar soluções concretas.
Na Alemanha, embora o SPD continue a ter uma forte representação operária, temos visto algo semelhante, porque não haja dúvidas que a consolidação da AfD, ocorrente em territórios menos “urbanos”, também se deve a uma viragem do SPD ao centro.
E, apesar dos Democratas terem tanto de socialistas como eu de liberal, não há caso mais cristalino do que o dos EUA, particularmente nos últimos seis anos. Enquanto força mais progressista, era esperado que os Democratas fossem os mais interessados nos problemas da classe trabalhadora, no entanto, vimo-los alheados do interior estadunidense e focados apenas nas causas mais queridas do mundo urbano, tendo a candidata democrata Hillary Clinton chamado a estes cidadãos de “deploráveis”. Perante isto, fábricas a fecharem, empregos perdidos e gente a morrer sem acesso a níveis básicos de saúde, alimentação ou habitação, bastou aparecer um populista nos Republicanos, a culpar o México e o Islão por tudo…
Os resultados eleitorais do Chega mostram que são o único partido, para além de PS e PSD, com uma votação territorialmente uniforme, e isso deveria servir de alarme. Ainda vamos a tempo. Basta é, em vez de fazermos festa com o desaparecimento da esquerda trabalhista para sinalizar uma qualquer forma de virtude, perceber o que está em jogo. E a resposta só poderá ser dada por um partido e, por mais louco que pareça, pelo único que ainda tem bastante representação operária e rural.
Foi assim que aconteceu na Suécia, onde o Partido Social Democrata nunca esqueceu a sua raiz operária e, por isso, continua a passar a esmagadora maioria do seu tempo no poder. Foi o que aconteceu recentemente na Dinamarca, sendo que o discurso islamofóbico de Mette Frederiksen é condenável, mas o facto é que houve um foco maior no mundo laboral da parte dos sociais democratas, e assim recuperaram o poder. Foi o que aconteceu ao establishment do SPD pouco antes da eleição de Olaf Scholz, com figuras como Saskia Eksen ou Kevin Kuhnert. Resta saber se o PS está disposto a isto. Da minha parte, enquanto socialista democrático e militante ativo, é o meu mais profundo desejo.
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