Não se verifica tão premente necessidade em usar a História para fortalecer o poder e a legitimidade dos Estados. Porém, hoje é a máquina partidária da nossa democracia que manipula e abusa da História em nome de um bem-maior ou mal-menor ideológico.
Crónica de Gonçalo Loureiro
Estudante de História na FCSH
Sinto uma grande inquietação ao ler e refletir sobre o debate que remete para as
celebrações do 25 de Abril em tempos de Covid-19. Não tanto pela minha
preocupação com a saúde pública dos convidados; mas mais com os argumentos
utilizados e a forma como é construída uma base histórica para apoiar esses
mesmos argumentos.
Ao chegarmos perto do cujo dia, sujeitamos-nos sempre a uma tentativa de usar a
História para expressar os nossos estados de alma: Vamos da esquerda à direita;
passamos pelo comunismo e pelo fascismo e há quem acabe no mesmo dia, mas
num mês diferente. No decorrer desta panóplia de histórias, lembranças, avisos e
recordações tropeçamos, mais vezes do que seria razoável, em anacronismos,
amnésias revisionistas e em mitos que visam incendiar a memória de uma Nação.
A História à mercê da Nação? É desde a Idade média, com o colapso do Sacro
Império Romano-Germânico que os reinos, principados e estados-nação têm
revelado uma vontade de fazer uso da História para legitimar o seu poder. Se os
grandes autores e artistas humanistas do Renascimento procuraram glória e
inspiração na Antiguidade Clássica, também a época romântica remeteu às raízes
da Idade Média o desenvolvimento da sua historiografia. A História, através da
memória, identifica e emancipa povos e nações. Exemplo disto é a Sociedade para
o Estudo da História Alemã, fundada em 1819, cuja divisa era O Santo amor da
Pátria dá força. Mudam os tempos, mas nem sempre mudam as vontades.
Existindo uma estabilidade discutível a nível internacional, não se verifica tão
premente necessidade em usar a História para fortalecer o poder e a legitimidade
dos Estados. Porém, hoje é a máquina partidária da nossa democracia que
manipula e abusa da História em nome de um bem-maior ou mal-menor ideológico.
São erguidos monopólios ideológico-partidários sobre eventos da nossa História e o
resultado é a desinformação e a falta de rigor na compreensão do processo
histórico. Simultaneamente, são usados chavões e partilhadas afirmações não
fundamentadas para justificar a celebração do 25 de Abril, a celebração do 25 de
Novembro ou para lançar nas redes sociais aqueles que resignadamente nada
celebram. Cabe à História contra-atacar.
O meu raciocínio impõe que convenientemente faça referência ao 25 de Abril e às
reformas que se seguiram no nosso sistema educativo. A democratização do ensino
em Portugal culminou numa explosão demográfica nas escolas e faculdades
portuguesas e numa necessidade em formar e contratar professores que pudessem
lecionar nos diferentes ciclos de ensino - as dotações são assim desviadas para as
infraestruturas de ensino e não de investigação. É ainda neste período que se
constrói aquilo a que eu chamo “fábrica de diplomas”, que ao persistir até aos dias
de hoje pressiona aqueles que podem obter um Doutoramento aos 27. Não quero
ser mal interpretado - O acesso à educação deve ser universal. Todavia, a formação
deve ser acompanhada de oportunidades que, no caso da História, se traduzem em
financiamento de centros de investigação dentro e fora das universidades. Este
investimento não pode ser só estatal.
“As Ciências Sociais e Humanas são sub-financiadas” poderia ser considerado um
facto histórico, mas a verdade é que a expansão das universidades, especialmente
na periferia do país, contribui também para um desenvolvimento significativo da
historiografia portuguesa, com investigações de mestrado e doutoramento
inovadoras e pertinentes. A este respeito, José Mattoso explica que a dificuldade de
difundir estas teses pela imprensa impossibilita a programação de investigações de
grande amplitude que retardam a larga medida a historiografia portuguesa da
historiografia mundial. Será agora mais fácil perceber porque é que os portugueses
têm algum desdém pela História, disciplina da mera curiosidade ou do desemprego.
Quis utilizar a questão da comemoração de 25 de Abril para extrair algumas ideias
sobre o estado da História em Portugal. Se por um lado os partido políticos
subvertem a história aos seus interesses num jogo de poder; por outro lado, a
História não consegue responder a este desafio, ao não existir quem aposte nesta
Grande Ciência, que não passa de um outro diamante bruto português. A
democracia só pode ser plenamente celebrada quando, conscientes da nossa
existência, encontramos harmonia no tempo e no espaço e o contributo da História
nesta missão é indispensável. Viva o 25 de Abril! Viva a História!
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