A época está oficialmente aberta no seu esplendor de repetitividade anual e o deliciar do humano com todas as suas particularidades.
de Francisca Marialva
Penduram-se luzes que amenizam a agressividade que é o sol pôr-se às 5 da tarde, erguem-se árvores que escondem aquela cómoda do século XIX que temos na sala, compram-se pais natais de chocolate como se fossem diferentes do milka regular que compramos no resto do ano, põem-se os pés na lareira (ou no aquecedor caso tenhamos esse luxo) e vimos um filme cujo enredo nada tem a ver com o natal, mas tem neve, azevinhos e analogias com renas e velhotes de barba branca, portanto encaixa.
Tudo isto é belo, tudo isto é reconfortante. A tradição para o ser humano - o hábito - é dos mecanismos mais importantes na perseverança da sua sanidade mental ou equilíbrio dos níveis de serotonina. Para não falar do bónus de natal que se esgota nos presentes aqui e ali - das idas à Tiger baratas, mas que indo 15 vezes já não são assim tão baratas.
O fim do verão tem sempre um peso, mas lá vamos sobrevivendo à ausência do calor com pequenos dias e celebrações que nos vão ajudando a atravessar a chuva, o vento - e as constipações, que são piores hoje em dia pela obrigatoriedade de enfiar uma cotonete até ao tutano ou ter medo de tossir num jantar. Até já do Halloween nos apropriarmos para ver se a indiferença do mês de novembro é ultrapassável. No entanto, chega dezembro e parece que a loucura reina, como se nunca tivéssemos vivido isto antes, como se não fizéssemos exatamente o mesmo todos os outros anos antes:
combinar a data de jantar de natal, quando a Marta tem viagens marcadas, a Teresa já se antecipou noutras datas com outros amigos, o Manel não responde ao WhatsApp, a Matilde manda propostas para copiar a mensagem e inserir o nome nas preferências, mas há sempre aquela amiga que não percebe a dinâmica
Decidir o presente daqueles tios que têm tudo e outro pote para a cómoda já não se safa e a vela para a tia ainda não pode ser, porque o pavio da outra que demos nos anos ainda nem queimou
Conferenciar a comida necessária com várias semanas de antecedência para não faltarem os sonhos que só a avó come, o bolo rei que sobra sempre porque ninguém gosta, o gelado de nata que em nada tem a ver com a época mas o filho predileto exige, o queijo da serra que o nosso primo mais novo acaba antes de sequer chegarmos ao jantar e aquele tio que marca território junto às entradas e não queremos dar um “chega para lá” para não termos um olhar matador da nossa mãe que depois nos chamará mal educados
Fazer programas natalicios para sentirmos a época como toda a gente, porque é natal e tem que se sentir alguma coisa, senão ou estamos em depressão ou sentimos que perdemos toda a criança que em nós habitava. E claro, para publicar nas redes que não estamos a falhar ao costume anual de nos ser autorizado agir como se o inverno fosse divertido
Eu, cá na minha velhice do Restelo, fico à espera da primavera e do verão para que possa ver o sol para lá das 5 da tarde, para que possa ter no máximo duas camadas de roupa, para que não corra o perigo de combinar passear sem ter chuva que se intrometa ou vento que me engripe (e tudo o que a isso se segue), para que as folhas não caiam e coloquem em risco a colisão entre o meu cóccix e a calçada e para que uma cerveja seja bebida sem me congelar as mãos.
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