De João Vasconcelos
Nunca se falou tanto do Ministério Público e sobre a sua atuação como ao longo dos últimos meses. Entre demissões de primeiros-ministros e quedas de governos regionais, tem sido um período de especial turbulência em Portugal (é melhor apertar os cintos).
Entre novembro de 2023 e janeiro deste ano, dois casos provocaram um terramoto político de grande magnitude em Portugal.
O primeiro foi a constituição de várias pessoas ligadas ao PS e a António Costa como arguidos (tendo também sido lançadas suspeitas sobre o proprio PM na altura), que levou à subsequente queda do governo.
O segundo foi o caso na Madeira que, também ele, levou à queda do governo regional, presidido por Miguel Albuquerque.
Ambos os casos têm algo em comum: as acusações do Ministério Público, em larga escala, foram contestadas e alteradas ou até mesmo descartadas.
No caso que marcou a reta final de 2023, pondo um fim ao governo de maioria absoluta do Partido Socialista, o juiz de instrução do processo veio afirmar que as suspeitas presentes no comunicado da Procuradoria-Geral da República a respeito de António Costa eram “vagas” e até “contraditórias”.
Ainda neste caso, não só em relação a António Costa, as opiniões jurídicas dividem-se.
Quanto à maioria dos arguidos formalmente constituídos, o juiz de instrução “apenas” observou crimes de tráfico de influências (em vez da panóplia de acusações feitas pelo MP), chegando a dizer que um destes não apresenta ter condutas penalmente relevantes.
Já no caso da Madeira, o juiz de instrução entendeu pela ausência de quaisquer práticas que constituíssem crime, rejeitando o pedido do Ministério Público de aplicar a medida de coação mais gravosa – a de prisão preventiva – aplicando antes a medida de termo de identidade e residência, dando assim mais uma machadada na atuação da PGR que contou com a maior operação montada pela Polícia Judiciária.
À luz disto, frisando que o Direito tem uma componente interpretativa considerável, não é compreensível uma desconexão tão saliente entre um dos maiores órgãos judiciários nacionais e os próprios juízes.
As interpretações dos factos não podem ser tao díspares entre aquilo que Ministério Público alega e a resposta por parte de vários magistrados.
Os recentes eventos vêm reforçar algo que se sente há sensivelmente uma década: o declínio acentuado da confiança no Ministério Público e, por consequência, mas não somente por isso, do sistema judicial português.
Um bom exemplo disto são os megaprocessos, que têm sucessivamente apresentado falhas, nomeadamente a nível temporal – olhe-se para o caso de José Sócrates ou Ricardo Salgado.
O que tem de mudar?
Desta forma, é necessário que algo mude rapidamente a nível interno dentro do Ministério Público para que a sua confiança seja restabelecida e de forma a que não caminhemos para uma “crise de regime”.
Diria que um bom começo passa pelo reforço da sua transparência para com os cidadãos acerca das suas ações e do seu rigor no que toca à sua ação.
O segredo de justiça é algo crucial para que sejam montados processos, investigações sejam feitas e casos sejam apresentados. Contudo, tal não implica prescindir da clareza a respeitodo que se tem feito. Os casos mencionados são bons indicadores acerca da perceção pública do MP.
É extraordinário que já passaram tanto meses desde aquele parágrafo cheio de nada do gabinete de comunicação da Procuradoria-Geral da República e ainda não existe qualquer acusação formal feita.
Não acredito que tenha sido o Ministério Público a “derrubar” o governo. Contudo, foi a gota de água de um mandato periclitante devido a um comunicado irresponsável.
Isto para dizer que, no meio de tanta incerteza, a Procuradora-Geral da Républica tem um dever cívico de informar os cidadãos do que se está a passar e não simplesmente comentar (especificamente o caso da Madeira) que discorda da decisão de um juiz, parecendo que estamos a presenciar um “conflito” entre a PGR e os juízes.
De forma a evitar o surgimento de um certo obscurantismo na atuação do Ministério Público, quando se dá a marcha do processo é necessário que este venha clarificar o que está a decorrer e quais os objetivos concretos do processo e, consequentemente, deixar a justiça correr o seu curso e não simplesmente permanecer num silêncio que é cada vez mais ensurdecedor em certas matérias.
Não se trata meramente de exigir que este órgão seja nítido quanto à sua conduta mas também de transparecer a confiança de que as instituições democráticas cumprem as suas funções e asseguram o respeito pelo Estado de Direito.
Em conjunto, é fundamental que a atuação deste órgão se paute por uma maior transparência e um por um maior rigor, sob pena de acusações de “ativismo judicial” por parte dos magistrados.
Neste sentido, para que a Procuradoria-Geral possa desempenhar o seu papel em condições, é necessário que lhe sejam fornecidas todas as ferramentas para que este possa executar o seu trabalho, mas é também necessário que esta transmita a certeza de que o fará de forma a evitar que narrativas perigosas comecem a envenenar os espaços públicos, levando a querer que as suas ações têm uma orientação política especifica ou interesses de terceiros por detrás.
Uma questão desta magnitude não tem soluções simples, nem uma única resposta resolverá todos os problemas.
Dito isto, continuarmos a observar o que parece ser um conflito entre juízes e a PGR não é de todo a situação em que devemos permanecer.
Esta situação figura-se como a ponta do iceberg dos problemas, alguns deles bem latentes, do sistema judiciário português, mas é necessário começar por algum lado.
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