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O paradoxo da Liberdade

de João Vasconcelos


A saga entre a União Europeia e Elon Musk densifica-se. No dia 12 de agosto, o comissário Europeu Thiery Breton partilhou uma carta diretamente adereçada a Musk, no dia imediatamente antes de este receber Donald Trump numa conversa online (através dos Spaces). 


Na carta, Breton alerta que Musk deve cumprir com a legislação europeia e dos seus Estados-Membros em matérias de desinformação e propagação de discurso de ódio na sua plataforma. 


Ora, Musk, tentando fazer-se passar por um Tony Stark da vida real, numa postura que já lhe é característica, respondeu a Breton com um meme do filme Tropic Thunder


Tony Stark, MCU


O comunicado do comissário europeu correu o Twitter (agora X), com os fanboys de Musk a levantar a bandeira da liberdade de expressão. Uns diziam que se tratava de “censura”, outros, de “socialismo”. 


Tivemos até deputados nacionais de um certo partido muito favorável à liberdade a brandar que a tentativa de Brenton de restringir o que na Internet se diz constitui um ataque vil à liberdade de expressão e de um profundo “paternalismo”. Mas a verdade é que não o é. 

Francamente, é desapontante e até constrangedor ver partes da nossa classe política caírem tão facilmente no engodo de Musk, ao defenderem o seu direito de fazer o que bem quer com a rede da qual é dono.


A Comissão veio, entretanto, esclarecer que a carta assinada por Breton não havia sido consensual, muito menos ter sido aprovada por Ursula Von der Leyen, tendo Bruxelas se afastado do próprio Comissário. 


Pessoalmente, parece-me que estamos perante um mútuo tiro no pé mútuo: Tanto para Breton, que deixou que o conteúdo da sua carta fosse interpretado simplesmente como uma proibição dirigida a Elon Musk relativa à sua conversa em direto com o candidato à presidência dos Estados Unido quando na verdade é um alerta para as mensagens difundidas no Twitter. Por outro lado, a Comissão arranca o seu mandato com um pé “furado”, ao mostrar-se desconexa nestes temas.


Posto isto, a verdade é que o proprietário da rede social X se tem vindo a tornar num extremista, firme crente em teorias da conspiração, preso na sua camara de eco onde apenas aquilo em que acredita é uma verdade absoluta. 

Os efeitos da sua postura online estão à vista de todos: um aumento vertiginoso de páginas com conteúdos de extrema-direita, a espalhar meias-verdades (quando as há), e a disseminar o ódio e a desinformação. 


Desta forma, querer legislar sobre estas matérias e estabelecer regras não constitui um atentado à liberdade de expressão, bem pelo contrário. 


Trata-se antes de proteger a liberdade de expressão e, acima de tudo, as regras da democracia. Além disso, e querendo operar dentro da União Europeia, não só Musk, mas como todos aqueles na sua rede social devem seguir a legislação em vigor e as suas regras de conduta. 


Tal como na vida real, onde a liberdade de expressão não é ilimitada, uma vez que, no limite, poderão haver sanções penais, o mesmo deve acontecer online


Uma rede social não pode ser um espaço onde seja permitida a difusão de ideias de índole xenófoba e racista, ainda para mais com o volume que o têm sido desde que Musk assumiu o comando do X (falecido Twitter) e que este até tem veiculado, ao promover contas como a End Wokeness ou a Libs of Tik Tok. 


Ao fim ao cabo, Musk não estava a tentar proteger a liberdade de expressão ao adquirir a rede social em questão; mas antes transformá-la num espaço capaz de servir os seus próprios interesses e agendas, censurando contas e palavras que não gosta (convido quem quiser a tentar escrever a palavra cisgender e ver o que acontece).


Mas não fica por aí. 


Recentemente, a revista Forbes lançou um artigo onde evidencia a forma como Musk está disposto a censurar contas e tweets a pedido de Estados tipicamente alérgicos à democracia. 


Diz-se que a rede social de Elon Musk censurou um documentário feito pela BBC acerca das eleições na Índia, que pintava o seu primeiro-ministro, Narendra Modi, sob um olhar pouco favorável.  


Foi também nas rede socias (inclusive no X) que surgiram as mensagens falsas acerca do esfaqueamento de várias crianças no Reino Unido ter sido perpetrado por um imigrante, o que acabou por conduzir à desordem e à perseguição de pessoas racializadas e outras minorias, a que se assistiu ainda este mês.


Enquanto isto, Musk ia “atirando mais lenha para a fogueira” com os seus tweets, chegando a questionar se o Reino Unido se havia tornado na União Soviética dos dias de hoje, por terem detido uma pessoa na sequência de um comentário feito na rede social vizinha (Facebook).  

A liberdade de expressão não é equivalente à liberdade para partilhar ideias que ataquem minorias já fragilizadas, como imigrantes, pessoas racializadas ou pessoas transgénero. Não é equivalente à liberdade para difundir informação falsa e incentivar à violência.  


E não, querer legislar sobre estas matérias não equivale à instauração de um novo lápis azul.


Não estamos a viver no mundo do 1984, por mais citações de George Orwell que sejam partilhadas (pobre homem se soubesse para o que é que invocam o nome dele). 


Admito que legislar sobre o que na Internet se diz é uma tarefa extremamente complexa, uma vez que pode facilmente restringir o bem que tanto quer proteger: a liberdade de expressão. 

Aliado a esta complexidade, ao contrário de uma frase dita em tempo real, onde é possível interpretar não só as palavras, mas o tom com que foi dita, assim como o seu contexto.


Um tweet ou num comentário do Instagram a capacidade para fazer este exercício analítico/jurídico é uma tarefa consideravelmente mais árdua, mas plenamente possível a partir de uma legislação rigorosa.


Tanto a União Europeia como os parlamentos nacionais têm vindo a debruçar-se sobre o tema, trabalho do qual já resultaram alguns frutos: é o caso DSA (Digital Safety Act), instrumento legislativo europeu no qual Breton alicerçou a carta adereçada a Elon Musk.  


Em suma, Elon Musk não é (por mais que tente ser) o messias da verdade, não podendo gerir o X como lhe aprouver.

Em prol da democracia, esteve deve ser impedido de continuar o caminho que tem vindo a trilhar nos últimos tempos, de deturpação de informação e difusão daquela que acredita ser a verdade absoluta.


É, pois, urgente o reforço dos instrumentos legais já existentes e a criação de novos instrumentos aptos a lidar com a quantidade de discurso de ódio que é disseminado pela Internet, a fim de proteger quem a frequenta. 


Não estamos, a meu ver, perante uma postura paternalista ou perante um ataque vil à liberdade de expressão.


Estamos, sim, perante uma atitude que urge tomar, numa altura em que a internet desempenha um papel fundamental na manutenção das instituições democráticas, espelhando a forma como, enquanto sociedade, nos organizamos.

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