Para mim é muito difícil falar de poesia de forma impessoal e objetiva, ou seja, sem «contaminar» a análise da obra com a minha experiência pessoal e a minha forma própria de sentir os poemas e de os interpretar à luz daquilo que eu vivi e tenho vindo a descobrir. Isto é ainda mais forte em mim no que toca à poesia de Adília Lopes, uma poetisa cujos poemas arrisco dizer que, hoje, me tocam como nenhuns outros.
de Cecília Faria
Para mim, a poesia de Adília é bela e simples, mais simples não poderia ser. Simples não no sentido de ser simplista, mas no sentido de que é despretensiosa, completamente genuína, uma poesia (quase impulsiva) que se percebe ser fruto daquilo que Adília pensa e sente em certos momentos. São poemas de uma honestidade como nunca antes vi.
Adília Lopes é profundamente honesta, é como se os seus poemas fossem uma transcrição dos seus pensamentos, tal como lhe vêm à cabeça em determinado momento. No fundo, como uma criança. Lembro-me quando li pela primeira vez o texto «Fragmento», do livro Irmã Barata, Irmã Batata (2000). Este é um texto de uma honestidade que nos choca, nos impressiona. Não estamos à espera de que, mesmo que alguém pense ou sinta aquilo que Adília descreve no seu poema, o escreva no papel e o «assuma» perante toda a gente.
Na minha aula de Literatura Portuguesa do Século XX, a professora referiu que a poesia de Adília Lopes é um gesto do coração e eu acredito veementemente nisso. Aquilo que Adília escreve é exatamente aquilo que ela sente ser a pequena verdade daquele momento. E no momento a seguir, novos pensamentos e novos acontecimentos podem fazê-la acreditar noutra coisa diferente, que pode até contradizer a anterior, mas Adília escreve sobre isso também, sem medo da contradição. Gosto muito disso nela, é talvez das coisas que mais me toca na sua poesia. Não ter medo de dizer asneiras, de se contradizer, de dizer coisas que os outros podem achar tolas.
Em várias entrevistas Adília Lopes cita Roland Barthes e diz: «(…) o Roland Barthes, que era um escritor e professor de literatura francês, dizia: “il faut toujours défendre cette chose en nous dont on se mocque” (temos que proteger sempre aquilo de que os outros fazem troça em nós). A arte, ser artista, protege-nos em relação à opinião comum, àquilo que é muito apenas a circunstância.» (Marques, 2005).
Quando leio os poemas de Adília Lopes e oiço as suas entrevistas fico com a sensação de que, tal como escreve Rosa Maria Martelo, Adília escreve «contra a crueldade». A crueldade dos outros, a crueldade do mundo. Esta crueldade começa na sua infância, sobre a qual fala frequentemente nas suas entrevistas e à qual se refere como um período escuro e triste da sua vida, vazio de carinho e amor, que inculcou em Adília (deveria dizer, Maria José Fidalgo de Oliveira?) este ódio pela brutalidade e a malícia que os outros conseguem como que mobilizar contra nós (tal como faz a psiquiatra Manuela Brazette com as suas palavras frias e cruéis).
Aliás, parece-me que o uso do pseudónimo «Adília Lopes» também pode ser visto, precisamente, como um ato de revolta contra a crueldade, essa crueldade que marcou a sua infância. Quando questionada acerca da utilização de um pseudónimo para assinar os poemas, Adília Lopes explica, na sua entrevista com Carlos Vaz Marques: «Eu dava-me mal com o meu nome. Tinha problemas com os meus pais e o meu verdadeiro nome, o do bilhete de identidade, era o dos meus pais».
Porém, não seria justo pensar que a infantilidade e impulsividade que descubro nos seus poemas e na maneira «descomplicada» como transpõe para o papel aquilo que pensa significam, na verdade, que Adília Lopes não leva os seus poemas ou a poesia a sério. Muito pelo contrário, ela afirma: «Eu levo a minha poesia muito a sério. Para mim é uma questão de vida ou de morte. (…) De vida ou de morte, sim. É uma questão de sobrevivência. Se eu não escrevesse poesia não sei o que seria de mim. Seria muito difícil sobreviver emocionalmente, mentalmente.» (Marques,2005). Isto torna-se evidente na sua «obsessão» pelo rigor da edição e pela necessidade, tantas vezes enfatizada, da publicação de poemas (não só os seus, mas todos) sem gralhas – um erro crasso que pode alterar por completo o sentido daquilo que está escrito.
Vivemos numa sociedade capitalista, na qual as pessoas se regem por uma lógica cada vez mais individualista segundo a qual levarmos uma vida autocentrada e em função apenas dos nossos interesses próprios é considerado o ideal que nos levará à felicidade suprema. Uma lógica cujo princípio base é a ideia de que temos de pensar sempre primeiro em nós próprios e (talvez) depois nos outros. Cada vez me apercebo mais de que esta lógica implica necessariamente uma crueldade para com os outros e para com o seu sofrimento. Implica uma indiferença e uma insensibilidade para com as tristezas e angústias das pessoas à nossa volta.
Porque parece-me que só assim é possível pôr sempre e inquestionavelmente os nossos interesses à frente dos dos outros. Só desta forma podemos pensar que fazer alguma coisa pelas outras pessoas (por mais pequeno e banal que esse gesto seja) é um sacrilégio e significará que estamos inevitavelmente a sacrificar o nosso bem-estar por alguém que não merece (porque segundo esta lógica hiperindividualista que descrevo, ninguém no mundo é ou será merecedor do nosso sacrifício e do nosso altruísmo, nós próprios somos a única pessoa cujo bem-estar devemos ter em conta ao tomar as nossas decisões quotidianas).
É uma lógica profundamente perversa, porque, ao mesmo tempo, também nos coloca a nós numa posição não merecedora do altruísmo e, em última análise, do amor dos outros (porque, pelo menos na minha visão, o amor implica sempre sacrifícios). É também uma lógica profundamente competitiva, de acordo com a qual os outros representam constantemente um obstáculo à concretização dos nossos objetivos e, dessa maneira, surgem como potenciais ameaças ao nosso bem-estar. Por isso temos de ser cruéis, temos de conseguir não ter dó nem piedade por ninguém, não nos envolver emocionalmente com os outros e as suas histórias.
Envolvermo-nos significaria pôr em causa os nossos planos, perdermos o foco em nós e nos nossos interesses. Assim, parece-me que, hoje, viver é estarmos sempre expostos à crueldade dos outros, arriscarmo-nos sempre a que eles sejam indiferentes ao nosso sofrimento e se aproveitem de nós. Quantas vezes na minha vida ouvi e continuo a ouvir que a minha sensibilidade pode ser usada pelos outros para se aproveitarem de mim... Talvez Adília Lopes esteja, como eu, a pensar nisto mesmo quando diz: «O exterior tem muitas ameaças. Ameaças de intromissão naquilo que nos é mais querido, naquilo que temos que defender. Naquilo que faz parte de nós mesmos. Naquilo que faz a nossa integridade» (Marques, 2005).
Para mim, Adília Lopes representa o oposto de tudo isto, é uma luz que surge no meio de uma multidão insensível e bruta. A sua poesia insurge-se contra esta insensibilidade e indiferença perante os outros, perante os seus desejos e as coisas que eles consideram importantes.
Na nossa sociedade hiperindividualista, pensar nos outros e sofrer com o seu sofrimento passou a ser considerado ridículo. É ridículo sacrificarmo-nos pelos outros, pensarmos primeiro neles e só depois em nós. Deixarmo-nos afetar pelo que os outros nos dizem, pela sua crueldade, também passou a ser considerado ridículo, porque deixou de fazer sentido darmos importância ao que os outros pensam, é ridículo deixarmos que as suas palavras nos afetem (só deveríamos importar-nos com o que nós próprios pensamos e dizemos). Eu não consigo ser assim. E parece-me que a Adília também não. Com a sua poesia, ela mostra-me que não é ridículo sermos sensíveis à crueldade dos outros, importarmo-nos com aquilo que eles nos dizem. Ser sensível às palavras dos outros não é ridículo, é um ato de coragem.
Compreendi que não ter medo de não ser cruel é hoje mais difícil do que ter medo de o ser. Hoje, a sensibilidade tornou-se assustadora, tornou-se um perigo, algo que os outros podem usar contra nós, tornou-se, acima de tudo, ridícula. Em várias entrevistas Adília Lopes diz que não é calculista, não é maldosa. «Só gosto de pessoas boas», escreve Adília no seu livro Estar em casa (2018). Eu também.
Como já referi, Adília Lopes diz que «aquilo de que os outros fazem troça em nós é aquilo que temos que proteger mais» (Marques, 2005). A palavra «troça» tem, neste contexto, um significado mais amplo do que apenas «gozo», trata-se daquilo que os outros podem achar tonto ou parvo em nós, das coisas que nós valorizamos, mas de que os outros fazem troça porque consideram ser insignificante ou sem importância. Marcou-me muito esta frase que li na entrevista que Adília Lopes deu, em 2001, à revista Inimigo Rumor: «O sofrimento nunca é ridículo.(…) O que importa é não ficar indiferente a nenhum sofrimento e proteger sempre aquilo que os outros acham ridículo em nós.»
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