Há uma lei básica da vida que fiquei a conhecer nas aulas de introdução à economia: as necessidades do ser humano nunca estão saciadas, nunca chegamos a um ponto em que nos sentimos completos e plenamente satisfeitos com aquilo que temos.
Texto de Cecília Faria
Entramos na praça, por uma rua estreitinha, e avistamos uma acolhedora esplanada onde decidimos sentar-nos a lanchar e apreciar a tarde. Pedimos ao empregado que traga o menu, mas ele responde-nos que já não existe. Agora, temos de aceder com o nosso telemóvel através do QR Code. Explicamos-lhe, constrangidos, que não conseguimos fazer isso com o nosso telemóvel, se não será possível trazer um menu físico. Diz que não, que isso já não existe ali. A única opção é irmos lá dentro e reduzirmos a nossa escolha aos bolos que estão à vista na montra. Bastante contrariados, lá instalamos uma aplicação para ler QR Codes e acedemos a um pdf de 8 páginas com todo o tipo de cafés, sumos naturais, bolos e doces como crepes, waffles e churros com chocolate.
Não consigo evitar ficar a pensar nesta dependência cada vez maior em relação ao telemóvel e que a pandemia veio aumentar com a entrada em força das tecnologias em todas as esferas das nossas vidas. Neste momento não fazemos nada sem o telemóvel. Aparentemente, até para ir lanchar ou tomar um café é preciso ter um telemóvel e não é um telemóvel qualquer, é daqueles que leem QR Codes com a câmara e que conseguem descarregar e abrir PDFs.
É que talvez nos tenhamos esquecido, mas ainda existem telemóveis que não fazem isto. A minha mãe e a minha avó, por exemplo, têm um desses, de teclas, que serve unicamente para aquilo que, originalmente, seria a função de um telemóvel: receber e enviar mensagens, atender e fazer chamadas.
Para mim é a eterna luta: quero largar o telemóvel, arranjar um desses de teclas e voltar a não estar dependente do telemóvel constantemente. Porém há sempre um «mas», os eternos e constantes «mas»: mas dá sempre jeito ter internet no telemóvel, aliás, hoje em dia já não se faz nada sem internet no telemóvel; mas como é que eu faria sem o Whatsapp, por exemplo?; mas dá tanto jeito utilizar o Google Maps ou aceder ao email quando for preciso; mas e o MB Way também é super prático e, também, é sempre bom ter aquele joguinho instalado para ir jogar e descontrair de vez em quando.
Há uma lei básica da vida que fiquei a conhecer nas aulas de introdução à economia: as necessidades do ser humano nunca estão saciadas, nunca chegamos a um ponto em que nos sentimos completos e plenamente satisfeitos com aquilo que temos.
Ou seja, assim que conseguimos satisfazer as nossas necessidades mais básicas, surgem no nosso dia-a-dia novas necessidades que desejamos satisfazer e que, uma vez satisfeitas, dão lugar a outras diferentes. Obviamente, estas «necessidades» vão sendo cada vez menos «necessárias». E toda a gente sabe que isto também acontece com o telemóvel e com as aplicações.
A partir do momento em que compramos um smart phone e instalamos whatsapp, mbway, ubereats já não vamos voltar a desinstalar e, sobretudo, já não vamos voltar aos antigos telemóveis de teclas. Criamos necessidades e estabelecemos hábitos que estão diretamente dependentes dessas aplicações. Essas aplicações tornam-se «necessárias» nas nossas vidas.
A verdade é que estamos cada vez mais dependentes dos nossos telemóveis. E isso assusta-me, sobretudo assusta-me o facto de ninguém estar preocupado, o facto de todos nós acharmos que isto é normal.
No outro dia ouvi um grupo de amigas a comentar o quão fantástico é o facto de existirem aplicações para tudo. Lembro-me, até, de referirem que existe uma aplicação para avaliar casas de banho públicas e, assim, saber que casas de banho devemos evitar e quais aquelas que, efetivamente, estão devidamente equipadas e higienizadas para nos receber nos momentos de aflição. Uma delas comentou: «olha, por acaso isso dá imenso jeito!». Quão ridículo é considerarmos interessante e vantajoso o facto de existir uma aplicação no telemóvel que avalie casas de banho públicas? Se formos à Play Store podemos pesquisar qualquer palavra que aparecerão sempre milhares de aplicações com ela relacionadas. Por exemplo, se pesquisarmos a palavra «joelho» aparecer-nos-ão páginas e páginas de aplicações, algumas para ajudar a melhorar as dores no joelho, outras para fortalecer os músculos das pernas e por aí fora.
Não tomar nunca as coisas como factos incontornáveis da vida, algo que temos de aceitar. Porque é que agora que vivo numa cidade nova passo metade do tempo a olhar para o Google Maps no telemóvel em vez de tentar encontrar os sítios sozinha e desenvencilhar-me sem ajuda de aplicações? É normal sentirmos que já não conseguimos viver sem o telemóvel? Porque é que depositamos constantemente a nossa confiança e tomamos cada vez mais as nossas decisões em função de aplicações instaladas no telemóvel?
Quanto mais penso nisto mais percebo que os telemóveis se tornaram, sem dúvida nenhuma, uma extensão de nós próprios, algo a que recorremos constantemente, sempre que precisamos de alguma coisa.
A resposta, a solução há de estar na internet ou numa aplicação qualquer que temos instalada. Nunca está dentro de nós ou nas pessoas à nossa volta, está sempre no telemóvel. Tenho vindo a reparar que sempre que as pessoas dão por si sozinhas no meio de outras, recorrem ao telemóvel para não parecerem «tão sozinhas», para não ser constrangedor o facto de estarem simplesmente paradas a olhar sem fazer nada. Até para isto o telemóvel é um escape, permite-nos evitar o constrangimento de qualquer situação, não ter de enfrentar as pessoas à nossa volta.
Acho que, neste momento, não há mais nenhum objeto que consideremos tão indispensável quanto o nosso telemóvel. É engraçado, porque nos ensinam que tudo o resto é descartável, tudo o resto é passível de ser deitado fora ao fim de poucas utilizações.
O telemóvel é das poucas coisas que ainda vamos tentando estimar e tratar bem (compramos capas, pomos películas), precisamente para adiar o momento em que teremos de o substituir. Refletindo a sério sobre isto, acredito que talvez estejamos a descartar a coisa errada. A dependência, seja do que for, não é nunca uma coisa boa. E a dependência do telemóvel, independentemente de esta nos ser imposta pelas circunstâncias do nosso trabalho ou da vida prática, não é exceção.
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