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O "vírus chinês"

Tanto quanto sei, o vírus não tem nacionalidade, nem etnia, nem raça, e por isso ele é tão chinês quanto americano ou português – nomeadamente a partir do momento em que pode estar em qualquer lado e qualquer um de nós pode ser um veículo de transmissão do mesmo.

Aspas Aspas é o segmento do Crónico reservado a crónicas dos leitores



Uma crónica de Benedita Sá e Cunha

Estudante de Direito na FDL


O “vírus chinês” não é terminologia desconhecida para nomear o vírus responsável pela pandemia que recentemente parou o mundo, o coronavírus. A expressão, mais mediaticamente utilizada por Donald Trump, tem sido pouco consensual, para não dizer bastante controversa.


Como é sabido, o novo coronavírus teve origem em Wuhan, na província de Hubei, na China. Alegadamente, a origem do novo vírus foi localizada num mercado vivo de animais selvagens, onde o comércio e consumo de um sem número de espécies é prática corrente. Na verdade, o consumo de animais selvagens, inclusivamente vivos, é uma prática ancestral um pouco por toda a China. Julga-se, então, que o consumo de um destes animais tenha estado na origem do novo surto, pelo número elevado de pessoas infetadas que havia estado no respetivo mercado à data do início da epidemia.


Ora, perante o que foi exposto, há duas abordagens possíveis que se afiguram particularmente perigosas:


A primeira é a que materializa bem o que está por trás da expressão “vírus chinês”, teimosamente utilizada por Donald Trump (e não só) – a abordagem xenófoba e de ódio assumido ao povo chinês, apontado taxativamente como culpado do novo surto do vírus, que entretanto se converteu em pandemia, e que neste momento afeta praticamente todos os países do mundo.


Ora, para além de se me afigurar um tanto irracional culpar toda uma civilização de centenas de milhões de pessoas, espalhadas por todos os cantos do mundo, de um surto viral com uma origem localizada, parece-me igualmente disparatado atribuir uma nacionalidade a um vírus. Sim, o vírus tem uma origem geográfica, mas não passa disso mesmo. Tanto quanto sei, o vírus não tem nacionalidade, nem etnia, nem raça, e por isso ele é tão chinês quanto americano ou português – nomeadamente a partir do momento em que pode estar em qualquer lado e qualquer um de nós pode ser um veículo de transmissão do mesmo.


A insistência de Trump em taxar o vírus de “chinês” é declaradamente uma estratégia política de confronto e de responsabilização de um país que tem vivido em clima de animosidade e hostilidade com os Estados Unidos. Trump sabe o que está a fazer e parece querer passar a ideia de que chamar o vírus de chinês é uma mera pretensão de “rigor”, – já que o vírus surgiu, de facto, na China – mas no fundo, trata-se de colocar um target no país inimigo, no “bicho papão”. Não só isto, mas como bom populista que é, a estratégia de Trump passa por alienar o seu eleitorado, estimulando os sentimentos de medo, ódio, rivalidade e sobretudo aquele nacionalismo exacerbado característico de muitos americanos – enfim, do que mais primário há no ser humano.


O resultado, é aquilo a que se tem assistido recentemente: inúmeros casos de racismo e preconceito para com indivíduos asiáticos, que certamente tiveram tanta culpa do surto quanto quem os insulta e os responsabiliza. No final, estão ainda reunidas as condições para que Trump se possa desresponsabilizar das repercussões desta situação no seu país, mesmo que as consequências sejam fruto da sua total imaturidade, irresponsabilidade e incompetência. Esta é a primeira abordagem perigosa.


A segunda é a diametralmente oposta à primeira. É a abordagem do relativismo cultural absoluto (e absurdo) de que todas as práticas, todas as tradições, todos os traços culturais de cada civilização devem ser aceites e respeitados, independentemente de serem altamente contrários aos valores básicos da humanidade, ou de, como é o caso, colocarem a saúde pública em causa a uma escala global.


A origem do vírus na China não deve nunca ser utilizada como veículo de ódio para com o seu povo, mas também não deve ser ignorada. Isto não significa condenar todo o povo chinês, mas sim certas práticas que colocam em risco a saúde de todos. Aquilo que se passou no mercado de Wuhan e um pouco por todos estes mercados na China ultrapassa todos os limites do aceitável, dos mínimos de higiene e salubridade, e de saúde pública. Já para nem falar das condições abjetas a que estes animais, muitos deles selvagens, são sujeitos, colocados em jaulas empilhadas como se de mercadorias se tratassem. Não há que tolerar nem aceitar estas práticas, que devem ser condenadas pela comunidade internacional.


À data consta que o Governo Chinês decretou a proibição de alguns destes mercados, nomeadamente o de Wuhan, onde teve origem o surto, mas apenas temporariamente. É um imperativo de saúde pública, de higiene básica e de respeito pelos direitos dos animais que a proibição destes mercados se torne permanente, ou que haja pelo menos uma regulação apertada e minuciosa dos mesmos, o que claramente não se tem verificado ao longo dos últimos anos.


É de reconhecer que é difícil encontrar um meio termo nestas abordagens – a primeira é errada e perigosa per si, pelas razões mencionadas, e a segunda pode levar à primeira. No fundo, é importante apelar ao bom senso: perceber que não se deve entrar pela via das generalizações, do ódio ou da xenofobia; mas também não ceder a perspetivas híper-relativistas e de passividade em relação a estas práticas, que colocam a humanidade em risco e criam condições para a repetição futura de pandemias com consequências catastróficas, como provavelmente, e infelizmente, terá a covid-19.

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