Até há bem pouco tempo, na época em que tanques russos não cercavam Kiev, Viktor Orbán, o primeiro-ministro húngaro que vai a eleições no próximo domingo, baseava toda a sua política externa na letra de uma cantiga dos anos 80.
de Afonso Madeira Alves
“Eu tenho dois amores”, o êxito de Marco Paulo que valeu um triplo disco de ouro ao duplo oleoso de David Hasselhoff, explica-nos que não é fácil para o líder de um país da NATO amar Vladimir Putin nos dias de hoje. Na procura por resolver a incerteza expressa no refrão, sugere-se que o melhor será mesmo fingir que o problema não existe:
Que este encanto não se acabe
E eu já pensei tanta vez
Pois enquanto ninguém sabe
Somos felizes os três
Por mais vezes do que aquelas que seriam desejáveis — idealmente, cerca de zero vezes —, a navegação pela dualidade une o que à partida parece não poder coexistir. Em termos políticos, as justificações para tal calculismo gastam-se em assuntos que são “historicamente complexos” e que “movem muitos interesses”. Assim, reparamos que as posições categóricas apenas são exigidas quando uma guerra rebenta e a hipocrisia passa a desvalorizar face ao dólar.
No poder desde 2010, Orbán ora namora os fundos europeus, ora se deixa seduzir por avultados investimentos sino-russos. No entanto, chegado ao ponto em que a Europa assiste da primeira fila à guerra na Ucrânia, a acção política do primeiro-ministro húngaro tem colocado o seu país como uma das vítimas colaterais da invasão russa. Na mais recente reunião do Conselho Europeu, a participação especial do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky ficou marcada pela crítica feroz e individualizada à falta de apoio da Hungria de Orbán: “Têm de decidir com quem estão!”. Em resposta, o governo húngaro clarificou a sua posição:
1. O porta-voz do governo anunciou a rejeição dos pedidos de Zelensky, reafirmando que a Hungria não será ponto de passagem de armas para a Ucrânia, nem reforçará as sanções energéticas à Rússia;
2. Orbán acusou Zelensky de ser alguém que “só trabalha com o conhecimento que acumulou como actor”;
3. O ministro dos Negócios Estrangeiros alegou que o governo ucraniano tentou interferir nas eleições húngaras, sem dar quaisquer provas.
A Hungria de Orbán decidiu ser oficialmente clara, mas: oficialmente neutra, mas parte de uma aliança militar com o Ocidente que acolhe milhares de refugiados ucranianos; oficialmente um Estado-membro da UE, mas proponente de uma posição tão sórdida que valeu o boicote de uma reunião em Budapeste por parte dos outros três países do grupo de Visegrado (Polónia, República Checa e Eslováquia).
No próximo domingo, Orbán prepara-se para assegurar o seu quarto mandato consecutivo (o quinto, contando com o governo que liderou de 1998 a 2002). Ao conjunto de todas as condenações institucionais que o seu governo autocrata colecciona, Orbán responde com um domínio parlamentar que lhe confere legitimidade democrática. À vista desarmada, será entendido que as escolhas políticas da Hungria são o reflexo das escolhas do seu povo. Mesmo para os mais estudiosos, o sucesso interno de Orbán tem sido medido pelo aparente crescimento económico e pela falsa sensação de paz e segurança de um regime socialmente conservador e eurocéptico.
No seu jeito fleumático, o Viktator apresenta-se como a personificação do ressentimento histórico húngaro contra um Ocidente que abandonou o país num passado ainda bastante presente, deixando-o à mercê da tirania nazi e soviética, já depois de lhe ter retirado grande parte do território na sequência de Trianon. Porém, olhando ao pormenor, descortina-se que o regime de Orbán enganou todos de tal modo que nem sequer se esqueceu de se enganar a si próprio. Orbán considera-se um simples líder pragmático da escola realista que joga apenas com as cartas que tem. A sua motivação não é a História, mas sim a perpetuação de um político no poder.
Apesar de insistir na insignificância húngara face aos grandes players internacionais, não é de estranhar que a sua Hungria tenha captado a atenção da trupe trumpista norte-americana, que vê na dissidência da nação magiar o “Texas da Europa”. Conotado como um exemplo a seguir, Orbán representa o líder nacionalista de sonho: adorna o discurso bárbaro com fundamentações judaico-cristãs, ganha eleições focando-as na guerra cultural contra “perigosos” liberais e exerce o poder da sua máquina política de forma autoritária e radical.
O mediatismo de Orbán nos veículos de informação norte-americanos tem sido tudo menos insignificante: Tucker Carlson, apresentador da Fox News e principal caixa de ressonância de Trump, produziu um documentário propagandístico com reportagem em Budapeste, onde entrevista Orbán e os seus ministros. Antes, em 2018, Steve Bannon, o antigo conselheiro-mor da administração Trump, classificava Orbán como “o Trump antes de Trump”. Apesar dos elogios provenientes de norte-americanos ainda mais histéricos do que os habituais, Orbán é algo que o ex-presidente dos EUA nunca almejou ser: um homem com um plano.
No capítulo interno, importa entender que doze anos não são doze dias. No presente, ganhar uma eleição legislativa ao Fidesz — partido liderado pelo primeiro-ministro — é derrotar um final boss assente num sistema eleitoral por si reformado e que lhe deu dois terços do parlamento com cerca de metade dos votos dos eleitores húngaros. A desproporcionalidade da estrutura montada, e reforçada com o fenómeno de gerrymandering, indica um cenário em que o Fidesz precisa de 47% dos votos para atingir a maioria parlamentar, enquanto a oposição unida necessita de 52% para o mesmo objectivo.
Como se não bastasse, o primeiro relatório da missão de observação eleitoral, a primeira de larga escala a um Estado-membro da UE, relata as mesmas preocupações de eleições anteriores: o uso indevido de fundos públicos, a confusão entre os papéis do Estado e dos partidos e a transparência do financiamento de campanha e da linha editorial dos media. A título de exemplo do quão desvirtuado está o jogo político e a sua concentração na figura de Orbán, o candidato da oposição, Péter Márki-Zay, mereceu apenas 5 minutos de antena no canal estatal. Márki-Zay, um democrata cristão de centro-direita e ex-mayor de uma remota cidade do sul do país, foi o candidato único escolhido pela coligação de seis partidos da oposição, da esquerda à direita, reeditando-se uma solução de relativo sucesso nas eleições municipais de 2019.
De forma a combater um candidato pouco experiente e impoluto, o Fidesz tem intensificado a sua campanha negativa sobre Márki-Zay, aproveitando-se da tremenda vantagem de recursos face à oposição — mais presença nas televisões, mais propaganda nas redes sociais e mais cartazes nas ruas. Entre as mentiras contadas ao eleitorado, Márki-Zay é colado à figura desgraçada do antigo primeiro-ministro socialista Ferenc Gyurcsány (que Márki-Zay critica) e é ainda acusado de querer enviar húngaros para a guerra na Ucrânia, fazendo-se passar Orbán como o candidato pacifista. A luta é desigual porque não só as armas não são as mesmas, como também a eficácia de um partido unido que trabalha no poder é incomparável face às ineficiências de uma coligação negativa que tenta ir resistindo aos ataques de um tirano.
No domingo, os húngaros votarão três vezes: uma na eleição do próximo governo, outra num referendo sobre a limitação do ensino de questões LGBTI e uma terceira, porventura inerente às outras duas escolhas, no seu compromisso com uma Europa em guerra. Doze anos depois, já ninguém pode dizer que desconhece o quão feliz Viktor Orbán tem sido na companhia de Vladimir Putin.
Pelas suas centenas de crónicas anti-fascistas em tempos de exílio, Jorge de Sena afirmava que “a democracia é uma luta de todas as horas”. No final do dia, essa luta tentará garantir que, em todo o caso, um povo não sai traído pelas consequências da escolha soberana que tomou. Em auxílio do povo húngaro, e na parte que nos compete, ficar-nos-ia bem caso exigíssemos às nossas escolhas que não abraçassem quem luta declaradamente por outros motivos. Caso essa luta se mostre inglória, temo que o único caminho seja continuar a fazê-la.
P.S: Lembrei-me de um dia de Outubro de 2019. Fecharam as principais avenidas da cidade e perguntei a um amigo se o faziam para todos os líderes que visitavam Budapeste. A resposta veio com um sorriso sarcástico: “Que eu me lembre, só para o Putin. Deve ajudar a controlar os protestos”. Não houve grandes manifestações. Na semana seguinte, apareceu o presidente turco. Nunca vi tanta gente na rua a expressar o seu apoio a refugiados curdos. Povo solidário.
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