Crónica de Teresa Brito e Faro
Estudante de Direito na Faculdade de Direito do Porto
João Nunes / Reuters
Uma aspirante a jurista tenta, em 800 palavras, clarificar algumas questões levantadas nos últimos dias quanto à decisão instrutória de não julgar José Sócrates pelos crimes de corrupção. Ênfase em “tenta” e “algumas”.
1. O que é a prescrição e porque é que existe?
A prescrição do procedimento criminal ocorre quando decorrem certos prazos sobre a prática de um crime. Prazos estes que variam consoante a pena aplicável ao crime em questão, exceptuando-se apenas os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra, que são imprescritíveis. E quais são as suas implicações? Quando ouvimos que um crime prescreve, significa que deixa de ser possível instaurar ou prosseguir com o processo penal. Em poucas palavras, quem praticou o facto não será condenado.
O fenómeno das prescrições pode parecer, especialmente em contexto de corrupção, um sinal de complacência da justiça com certos comportamentos criminosos. A verdade é que, por muitos anos que passem, os factos não vão mudar e José Sócrates não se vai tornar menos culpado aos olhos dos portugueses. Contudo, em muitas situações, este mecanismo é essencial para impedir que o arguido fique eternamente à espera que o Ministério Público atue, protegendo nomeadamente pessoas inocentes do arrastamento indefinido de processos nos tribunais. Então o que é que podemos discutir aqui? A questão da adequação ou não do prazo de prescrição que a lei prevê para o crime de corrupção que, apesar de ter sido alterado para 15 anos em 2010, era de 5 anos à data da prática do crime – é este que prevalece, visto que, no Direito Penal, nunca se pode aplicar uma lei menos favorável ao arguido retroativamente.
2. Porque é que José Sócrates foi acusado de crimes prescritos?
Na acusação deduzida pelo Ministério Público, segundo o juiz Ivo Rosa, foi cometido o erro de acusar José Sócrates de um crime de corrupção que já teria prescrito. Isto significa que o Ministério Público não sabia que o crime tinha prescrito? A interpretação da lei não é consensual e um dos problemas que se coloca é o de saber quando é que o facto se consumou: será que o prazo começa a contar a partir do momento em que houve promessa de entrega de dinheiro por parte de Carlos Santos Silva a José Sócrates (entendimento do Tribunal Constitucional em fevereiro de 2019, quando se pronunciou sobre esta matéria num caso semelhante), ou a partir do momento em que a entrega do dinheiro efetivamente aconteceu? Ivo Rosa apoiou-se no acórdão do Tribunal Constitucional, mas esta perspectiva não é de todo pacífica e vem até contrariar a interpretação que tinha sido feita pelo Supremo Tribunal de Justiça, anteriormente, sobre a mesma matéria. Caberá agora à Relação determinar se houve ou não prescrição e, consequentemente, se o ex-Primeiro-Ministro irá ou não a julgamento pelo crime de corrupção passiva.
Na decisão instrutória, o juiz Ivo Rosa entendeu ainda que o Ministério Público não acusou Sócrates do crime certo, uma vez que a atuação do ex-Primeiro Ministro preenche o tipo legal de “corrupção passiva de titular político sem demonstração de ato concreto”. No entendimento do juiz, os pagamentos do empresário Carlos Santos Silva não tiveram uma contrapartida específica e acordada, mas sim o objetivo de “criar um clima geral de simpatia ou de permeabilidade por parte do primeiro-ministro”. Acontece que Ivo Rosa, enquanto juiz de instrução criminal, não tem competência para fazer uma alteração substancial dos factos, logo, mesmo que o crime não tivesse prescrito, a decisão seria de não pronúncia.
3. Com quem podemos ficar revoltados?
Depois de tantos anos de investigação, da constituição de 28 arguidos pela prática de 188 crimes e da detenção preventiva de um ex-Primeiro-Ministro, não é preciso ser jurista para perceber que alguma coisa falhou. Quem podemos culpar? Temos vindo a assistir, nos últimos dois dias, a um movimento de julgamento popular particularmente dirigido ao juiz Ivo Rosa. Embora seja fácil, na minha opinião, encontrar algumas falhas na sua atuação - assim como bastantes outras na do Ministério Público –, a justiça que os portugueses anseiam por ver ser concretizada depende de mudanças no sistema e não de interpretações da lei em decisões instrutórias. Alterações legislativas que ponham fim aos obstáculos no combate à corrupção, que acabem com o fenómeno dos mega processos colocados nas mãos de um único juiz e que criminalizem o enriquecimento ilícito são apenas três das questões de fundo com as quais nos devíamos preocupar.
4. Sócrates sai bem?
O ex-Primeiro-Ministro será julgado pelo crime de branqueamento de capitais, cuja moldura penal é de 12 anos (superior à do crime de corrupção), por falsificação de documentos e há ainda alguma probabilidade de que venha a ser julgado por fraude fiscal, estando esta decisão nas mãos da Relação.
Rejeito a tentação de me irritar ao ver imagens de um sujeito sorridente e orgulhoso, descansadamente refastelado numa esplanada a beber Super Bock. Pelo contrário, procuro tranquilizar-me ao saber que o antigo Chefe de Governo é finalmente transparente com os portugueses quanto ao seu carácter. É alguém que sai de cabeça erguida do tribunal onde o juiz - que supostamente arrasou a acusação do Ministério Público - o culpou de “mercadejar” o cargo de Primeiro-ministro.
Em poucas palavras, Sócrates não sai bem, mas podia sair pior. A boa notícia é que isto está longe de ser o fim.
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