Ainda não sei o porquê de aquele conselho ter tido tanto impacto, nem tenho de saber porquê. Não temos de saber a origem de tudo, ainda que, por vezes, pensemos que, se não soubermos as origens das coisas, nunca as iremos compreender totalmente
Crónica de João Salzar Braga
Nos últimos tempos, tenho sentido muitas dificuldades em escrever.
Não estou surpreendido com esta situação, até porque o meu pai, há uns meses, me preparou para o contexto de desinspiração que agora atravesso. Ele avisou-me que, na escrita, nem sempre as coisas correm bem (ou, pelo menos, como nós queremos). Ele disse-me «nem sempre irás conseguir escrever».
No momento em que ouvi essas suas palavras, eu pensei que já compreendia o seu significado, mas estava enganado (como estou sempre).
Na altura, não percebi, nem tinha como perceber o verdadeiro sentido daquelas palavras. Sei também que o meu pai não quis que eu as compreendesse naquele preciso momento. Os pais dão-nos conselhos com prazos. Quando nos dão um conselho ‘hoje’, nem sempre pretendem que nós o sigamos ‘hoje’. Às vezes, os pais dão-nos conselhos para ‘daqui a 20, 30 ou 40 anos’. Na tarde em que o meu pai me disse «nem sempre irás conseguir escrever», não me apercebi de que aquele conselho, que até podia ter passado despercebido aos meus ouvidos, vinha revestido de um prazo. Compreendi-o uns meses mais tarde, pois tinha sido essa a vontade do meu pai.
(Sei que irei perceber outros conselhos do meu pai apenas quando chegar aos 40, aos 50 e aos 60.).
O meu pai aproveitou o tema da ‘escrita’ para me dar uma indicação sobre a vida – sobre a vida, no geral. Ele sabe que eu gosto de escrever da mesma forma que gosto de viver. Mas escrever nem sempre é fácil. Nem escrever, nem viver. Dos muitos conselhos que o meu pai me deu, esse é, talvez, o mais importante e o que me marcou mais. Claro que há outros conselhos dos quais eu não me consigo esquecer:
«Nunca percas o contacto com as pessoas. Lê. Não sejas egoísta. Não te pegues com o teu irmão. Não tomes nada por garantido. Há amigos que servem apenas para beber copos. A vida é como um jogo de futebol.»
Mas aquele conselho foi o que me chegou com mais força.
Ainda não sei o porquê de aquele conselho ter tido tanto impacto, nem tenho de saber porquê. Não temos de saber a origem de tudo, ainda que, por vezes, pensemos que, se não soubermos as origens das coisas, nunca as iremos compreender totalmente. Eu nunca irei compreender o universo dos conselhos do meu pai e estou cada vez mais consciente disso. Mesmo que quisesse, e mesmo que passasse todos os meus dias a estudar a metafísica dos conselhos que o meu pai me deu (e dá), não iria alcançar nenhuma resposta. Tenho apenas uma certeza: os conselhos que recebo do meu pai nasceram ao longo da vida dele, da mesma forma que os conselhos que eu irei dar aos meus filhos nasceram – e nascerão – ao longo da minha vida.
Sei exatamente onde estava quando recebi aquele conselho. Estava sentado, na sala, de frente para o meu pai que, de perna cruzada, de jornal nas mãos e cabeça perdida entre as mesmas folhas de papel, me disse «nem sempre irás conseguir escrever» - «nem sempre irás conseguir escrever aquilo que pretendes», para ser mais preciso.
Já não sei porque é que aquele conselho surgiu, mas desconfio que tenha saído da boca e da mente do meu pai depois de eu lhe ter dito alguma coisa sobre o estado da minha escrita. O meu pai sabe que eu gosto de escrever e, entre os elogios que me oferece e as chapadas de realidade que me dá (uma vez disse-me que eu nunca vou ganhar um Nobel), motiva-me a escrever. Eu só não sei é se ele tem noção disso.
O meu pai motiva-me a escrever e eu não sei porquê, mas eu tento percebê-lo, da mesma forma que eu tento compreender tudo aquilo que me rodeia.
Eu sei que sou vaidoso e que a minha vaidade atinge, muitas vezes, as células do meu egoísmo. Com isso, sofro bastante – mais do que quando não consigo escrever. Se não tiver cuidado, hei de morrer de vaidade. A minha única salvação é a escrita.
Quando escrevo a minha vaidade egoísta desaparece. Eu destruo o meu egoísmo com as minhas próprias mãos, com as minhas próprias palavras. Quando escrevo, estou em paz comigo mesmo, compreendo-me e deixo expresso tudo aquilo que eu sinto. É paradoxal, mas, quando escrevo, não penso em mim. Penso nos outros e penso no milagre que é acordar todos os dias. Quando escrevo, paro de pensar em mim, apesar todas as minhas palavras terem necessariamente origem em mim. É um paradoxo.
Escrever é, desde o meu início, a minha salvação e senti-o sempre todas as vezes em que me sentei na minha secretária e atirei letras contra as paredes brancas, ainda por escrever, da minha vida. Estou a senti-lo agora.
Eu preciso de escrever. E o meu pai sabe isso, ainda que não tenha como adivinhar a influência que aquele conselho, que é a causa deste texto, teve em mim. Os conselhos do meu pai têm uma substância mágica. Eu sei que têm, até porque eu reconheço essa substância noutros momentos da minha vida. No areal da Meia-Praia. Nos versos de Eugénio de Andrade. No café que eu bebo todas as manhãs a contemplar a janela da minha cozinha. Nos troncos que ardem na minha lareira.
Os conselhos do meu pai, às vezes, vêm com prazos, mesmo que eu não os consiga logo identificar.
Mas o «não sejas egoísta» não veio com prazo.
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