Longe da vista, longe do coração: se não tivermos de os observar enquanto morrem em lares de cantos recônditos do Alentejo não existem, não são problema, é como se não morressem sequer.
Crónica de Francisco Costal
Estudante de Medicina, NOVA
29 de Maio de 2018.
Nesse dia nublado de quase-Verão, o Parlamento chumbou a despenalização da eutanásia. Recordo bem a ansiedade durante a votação, a alegria contida dos festejos nos corredores do Parlamento e a viagem triunfante até ao metro do Rato na companhia do F.
Tudo poderia ter ficado por aqui. No entanto, faço mais um esforço de memória e lembro também o rasgar de vestes colectivo nas televisões, jornais e redes sociais provocado por um cartaz com o slogan Por Favor, Não Matem os Velhinhos!, bem como o ataque ad hominem abjecto contra a jovem que o empunhava, a V. Foi uma semana em que supostos humoristas, pretensos comentadores e avençados de todo o tipo puderam destilar ódio contra a V. e contra tudo o que ela – diziam eles – representava: os betos de sapato de vela, os beatos, os ratos de sacristia, os conservadores, os meninos de colégio, aqueles que não sabem o que é a vida e aqueles que deviam ir ver o sofrimento nos hospitais e lares.
Infelizmente, todos perderam uma oportunidade de olhar para o país e reflectir um pouco. As palavras impressas naquele bocado de papel não pretendiam ser um retrato literal da distopia que se seguiria à legalização do homicídio a pedido da vítima, mas antes constatavam o evidente – que esta era sintomática duma sociedade em que a vulnerabilidade é considerada um defeito, que só poderia ser aceite por uma humanidade que já não consegue entender o sofrimento como parte da sua existência e que a eutanásia, tarde ou cedo, seria vista como uma forma normal e moral de contornar a dor.
Avançámos 2 anos e muito mudou. A lei da morte provocada passou na Assembleia da República em Fevereiro de 2020 e o país e o mundo foram atingidos pela pandemia de Sars-CoV-2. É neste contexto que, em pleno Verão, descobrimos que a maioria dos utentes falecidos por COVID-19 no lar de Reguengos de Monsaraz pereceram, afinal, de desidratação.
E o país mudo.
O mesmo país que, em 2018, celebrou a proibição da eutanásia nos canis, não grita por estes velhos. O mesmo povo que assinou em massa a petição Fazer justiça pela morte do Simba não acorre agora, em clamor, para que se faça justiça pela morte destes idosos. A mesma sociedade que queria enviar humanos para um incêndio em Santo Tirso, para que se salvassem cães e que queria fazer justiça com as próprias mãos, trocando sangue animal por sangue humano, não se enraivece agora com esta chacina a céu aberto, com esta incúria estatal e civil, com esta vergonha nacional.
Os cães latem e as pessoas choram, os velhos morrem e a caravana passa.
E de que forma está tudo isto relacionado – a eutanásia, a ceifa de vidas num lar alentejano, o vírus, a defesa dos animais?
Só uma sociedade profundamente doente não consegue ver a contradição gritante destes dias, o óbvio ululante deste crime em Reguengos de Monsaraz.
Vivemos tempos em que o Estado oferece, com mais facilidade, a morte do que um copo de água a um velho sedento. A sociedade equacionou, em meados de Março, a quarentena compulsiva para os idosos, em prol duma utópica segurança sanitária. Condenámos milhares de anciãos ao abandono, à destruição da sua saúde, ao rebaixamento da solidão sem sequer considerar outra forma ou alternativa. A melhor maneira que o Portugal moderno encontrou para lidar com os velhos – no fundo, o espelho dos nossos maiores medos e fraquezas – foi abandoná-los, deixá-los à sua sorte, oferecer-lhes uma morte longínqua e higiénica. Longe da vista, longe do coração: se não tivermos de os observar enquanto morrem em lares de cantos recônditos do Alentejo não existem, não são problema, é como se não morressem sequer.
Chegados aqui, torna-se fácil de entender a antropomorfização dos animais. Afinal, estes não nos dirigem olhares reprovadores quando são deixados numa casa de acolhimento, não necessitam de quem lhes dê banho ou mude as fraldas, não gemem nem se queixam. As suas necessidades são fáceis de entender e não nos obrigam a esse permanente choque com o abandono e o sofrimento.
O Portugal de 2020 é esta nação medonha na qual políticos batalham, em nome duma aparente compaixão, pela morte de doentes e pela salvação de cães; na qual os partidos medem forças por votos de pesar pelos elefantes do Camboja, mas guardam silêncio quanto ao lar de Reguengos de Monsaraz; na qual é mais fácil afagar o pescoço do Simba, do que matar a sede a uma pessoa.
O Portugal de 2020 é, de facto, uma pequena distopia em que mais prontamente se vertem lágrimas pela morte desumana de dezenas de animais do que pelo crime animalesco perpetrado, pelo Estado, contra 18 seres humanos.
12 de Agosto de 2020.
Enquanto supostos humoristas, pretensos comentadores e avençados de todo o tipo continuam em silêncio perante velhos que gritam por clemência e cadáveres que clamam por justiça, a V., a jovem vilipendiada durante uma semana junina de 2018 por não saber o que era a vida, pôs-se a caminho dos sítios onde ninguém quer chegar para ser a água que cura a sede, a compaixão que ampara a dor e a mão que alivia a solidão.
Continuemos, hoje, a pedir aos nossos responsáveis para que, por favor, não matem os velhinhos! Talvez, assim voltemos a oferecer-lhes o mesmo carinho que ofertamos a um animal. Talvez, assim, passado este tempo de valores invertidos, ao invés de políticos desinteressados, milícias populares de defesa animal ou autoridades de saúde incompetentes, possamos criar um país à imagem da V.: misericordioso, compassivo, verdadeiramente humano.
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