de Maria Leonor Carapuço
Recentemente, enviou-me um amigo (e cronista neste jornal) o seguinte título de notícia:
Tenho de concordar que é uma frase curiosa. Não porque eu perceba alguma coisa de futebol (aprendi com esta conversa quem era Quique Flores), mas porque no último ano em que vivi no Uruguai descobri um país muito interessante, que realmente tem algumas parecenças a Portugal.
Este paralelismo deixou-me a pensar e levou-me a listar as características do Uruguai que me fazem recordar Portugal (que também podem ser interpretadas vice-versa).
1. Sistema nacional de saúde e educação
À semelhança de Portugal, dois dos pilares fundamentais da democracia uruguaia são o acesso gratuito à educação e à saúde.
A educação é um tema levado realmente a sério. O sistema educativo uruguaio orgulha-se de ser laico, gratuito e obrigatório há 145 anos. Até ao sexto ano de escolaridade (entre os 11 e os 12 anos), os alunos usam uma túnica branca com um laço azul-escuro (túnica e “moña”), uma tradição que vem já desde 1877, como símbolo de igualdade entre todos os estudantes.
Fonte: El País, Uruguai
A sua gratuitidade, ao contrário de Portugal, estende-se até ao ensino superior. A Universidade da República (UDELAR) é a universidade mais prestigiada do Uruguai e a sua única universidade pública, com mais de 100 mil estudantes. Os seus órgãos diretivos são designados através de eleições obrigatórias para atuais e ex-alunos. É muito frequente que os estudantes trabalhem enquanto estudam, pelo que também não é mal visto que demorem mais tempo a terminar o curso. Estes fatores têm como consequência um acesso ao ensino superior bastante mais democrático face a Portugal.
Quanto à saúde, o tema varia para a população ativa e empregada relativamente à restante população. Todos os cidadãos têm direito a cobertura médica. No entanto, uma vez empregado, um cidadão uruguaio começa obrigatoriamente a descontar para o Fundo Nacional de Saúde (FONASA) e é-lhe dada uma escolha. Pode optar por usufruir da saúde pública estatal, tendo assim acesso aos serviços da ASSE (que em Portugal corresponde ao SNS), ou filiar-se a uma “mutualista”, um prestador de saúde privado.
Os serviços de prestadores de saúde privados, apesar de gratuitos, acabam por ter custos extra face ao privado (por exemplo, para realizar análises médicas ou exames). Um trabalhador que desconta para o FONASA e está associado a uma mutualista também adquire esse direito para a sua família, sendo que nesse caso os aportes aumentam.
2.“Portuñol” is a thing
Para os portugueses, a palavra “portunhol” é usada para caracterizar a capacidade que todos acreditamos inerentemente ter de falar uma aproximação suficientemente grande ao espanhol que seja compreensível para “nuestros hermanos”. No fundo, uma piada privada entre todos os portugueses.
No entanto, se no Uruguai dissermos que falamos “portunhol”, seremos interpretados de uma forma completamente diferente. O dialeto “portuñol” é algo que realmente existe. Também conhecido como “português uruguaio”, trata-se de uma variedade dialetal do que hoje se conhece nos meios académicos como “Dialectos portugueses del Uruguay'' (DPU). O dialeto surge e é sobretudo falado na região fronteiriça entre o Uruguai e Brasil, com origem na colonização portuguesa nesta área, e tem uma raiz cultural forte nas relações pacíficas e de integração que existem entre estes dois países.
O português uruguaio está presente em músicas de fronteira (como a variante da cumbia que tem origem nesta zona, à qual chamam “cumbia bagacera”) e também em poemas e livros escritos neste dialeto, sendo o autor Fabián Severo a principal referência.
A cultura de fronteira é conhecida por todo o país e caracterizada em alguns dos filmes uruguaios mais conhecidos nacional e internacionalmente, como é o caso do filme “El baño del Papa”. Esta longa-metragem caracteriza a sociedade uruguaia da fronteira nos anos 80, a sua pobreza e forma de vida, além da dinâmica de contrabando fronteiriço. Os cidadãos desta região deslocam-se ao Brasil (até hoje) para comprar produtos mais baratos.
A proximidade com o Brasil leva a que muitos uruguaios também falem português do Brasil, que é ensinado nas escolas públicas (num sistema parecido ao ensino do francês ou do espanhol nas escolas portuguesas). Numa economia com uma vertente importante de turismo, semelhante a Portugal, a proximidade aos países vizinhos (Argentina e Brasil) é muito relevante e a facilidade de comunicação é necessária.
3. Governo de coligação de esquerdas
No Uruguai também existe uma “geringonça”, bastante mais estruturada, que governou durante 15 anos.
O “Frente Amplio” é um partido constituído por diferentes partidos e movimentos de esquerda uruguaios como o Partido Socialista, o Partido Comunista e o Movimento Proletário Revolucionário, entre muitos outros. Dentro dos grupos que compõem o Frente Amplio podem encontrar-se diferentes ideologias como o comunismo, o socialismo, o marxismo, a social-democracia e, em menor medida, o liberalismo e a democracia cristã.
Esta coligação formou-se em 1971 (em 2007 surgiu um partido de igual nome e conceito no Perú e em 2017, no Chile, por exemplo). Entre os anos de 2005 e 2020, o Frente Amplio governou o país, com os presidentes Tabaré Vázquez (2005-2010 e 2015-2020) e o famoso presidente “Pepe Mujica” (2010-2015).
A 1 de março de 2020, chegou ao poder o presidente Luis Lacalle Pou do Partido Nacional, como líder de uma coligação formada pelos partidos da oposição (do centro-direita à extrema-direita). Dado que os dois principais partidos que formam parte deste governo são o Partido Nacional, cujos seguidores são designados de “blancos”, e o Partido Colorado, esta coligação é chamada de coligação multicolor.
É de destacar que o Uruguai é um país politicamente estável com uma forte tradição democrática, sendo estas características um dos principais atrativos do país.
4. Estrutura societal
A estrutura societal do Uruguai e a portuguesa têm algumas semelhanças. Como em Portugal, a população do Uruguai concentra-se no litoral e sobretudo na capital, Montevideu, onde residem mais de um milhão de pessoas. Também como em Portugal, mas contrariamente a muitos países da América Latina, a pirâmide social do Uruguai é muito envelhecida, consequência nomeadamente do acesso à saúde e a condições de vida básicas que permitem um aumento da esperança média de vida.
O Uruguai caracteriza-se por ser o país da América Latina com menores índices de desigualdade. Com aproximadamente 3,3 milhões de habitantes, um terço da população de Portugal, o território uruguaio contabiliza-se em 176 215 km², perto do dobro do território português. Pela sua estabilidade política e posicionamento a Este, este pequeno país da América Latina funciona como ponto de entrada para a América Latina e para o Mercosul, à semelhança da posição de Portugal face ao resto da Europa.
5. País(es) do futebol
Quique Flores compara dois países pequenos para a sua região (e contexto mundial), mas dos quais saem quantidades proporcionalmente impressionantes de excelentes jogadores de futebol. O Uruguai pode não ser o berço de Cristiano Ronaldo, mas a seleção nacional de futebol uruguaia já foi campeã mundial duas vezes, chegando às semifinais em três ocasiões e sendo apurada para 13 edições da Copa do Mundo. Dados impressionantes para um país de aproximadamente 3,3 milhões de habitantes.
Muitos jogadores internacionalmente conhecidos são uruguaios, sendo possivelmente o mais famoso Luis Suárez. Em Portugal, o uruguaio Sebastián Coates liderou a equipa do Sporting aquando da vitória do campeonato da Primeira Liga em 2021 (penso que é um dado ainda fresco na memória de todos). Destacam-se também, no Benfica, o atual jogador Darwin Núñez, bem como Maxi Pereira, atualmente regressado ao Uruguai, onde joga no Peñarol.
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