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Pausa para Fumar I


A razão está do lado dela. O cheiro, a cor dos dentes e, acima de tudo, a saúde, saem a perder com este vício. Mas bem, quem sou eu para moralismos? Aliás, vou fazer companhia ao vosso vício e acender um cigarro.


É uma fuga, um escape. É muito mais que uma habituação qualquer ou um capricho. Se cada cigarro se fumar em cinco minutos, estamos a falar de 100 minutos de um pequeno prazer num maço, um escape de todas as merdas que acontecem ao nosso redor.

Dêem-me só 30 segundos para levar o portátil, o isqueiro e o meu maço para a varanda, que se fumar dentro de casa, levo na cabeça.


Bem, como estava a dizer... é certo que estes tubinhos de nicotina nos matam aos poucos. Mas é certo que um dia iremos morrer. Se calhar, a vida até nos ficará a dever alguns dias, meses ou anos e este esforço para os mantermos do lado certo será em vão e nada de bom nos trará. É uma questão de perspetiva.


100 minutos de alguma paz, 100 minutos de poder refletir sobre qualquer coisa que só naquele momento se deixará importunar, tudo isto por uns míseros 5 euros… existem negócios muito piores e, num mundo como este, cheio de merda, 5 euros por um pouco de paz parece uma oferta espetacular, na verdade.


Há pouco, quando estava a voltar para casa, sentei-me num banco, tirei o meu maço e fumei um cigarro. Um Luckies que me fez, de facto, sentir-me um sortudo. Acendi-o e fiquei ali, cinco, dez minutos a ver o tempo passar.


Vi uma feira de vegetais e frutas ser desmontada ao fim da tarde. Os homens a carregar as vigas mais pesadas das suas bancas e as mulheres e algumas crianças a pôr as hortaliças e os verdes que não foram escolhidos em caixas, que os homens carregariam para carrinhas de caixa aberta. Muitas folhas esmagadas ficam no chão, pisadas e maltratadas. Nunca chegam a conhecer casa. Nunca chegam a conhecer um tacho porque, por obra do destino, quiseram que elas caíssem por distração ou por arrogância humana e ali ficassem até ao fim deste festival de compras.


Há pombos por perto, a espreitarem estes pedaços de verde que ficaram deitados como mortos no alcatrão que se despede dos feirantes. Andam na ramboia, num bailado de passo para a frente e passo para trás, a marcar o território de ninguém, mas que eles julgam como seu. No final, um espernear ou um conjunto de palavras tricotadas com mais raiva, atiradas a estes bichos, fá-los afastarem-se, mesmo que por pouco tempo, do lugar daquela contenda.


As últimas vendas são feitas por aqueles que só abandonam o seu posto quando o sol se começa a pôr e, como estamos no melhor mês de inverno – janeiro – o sol já tem menos sono e vai começando a ficar acordado cada vez mais tempo. Os atrapalhados – os que nunca têm dinheiro que chegue ou o certo – fazem figuras de aflitos e desamparados, ao que os feirantes respondem de forma calorosa e adiam a dívida para a semana seguinte, fingindo que anotam esses míseros euros ou cêntimos a cobrar num espaço sagrado da memória.


“Eu passo aqui para a semana com o que falta das beterrabas!” dizem os tontos que se esquecem de trazer mais moedas na carteira.

Os gatos, há muitos de rua por esta zona, comem, deliciados, tudo o que vai ficando para trás ou o que as pessoas lhes dão. Há uma mudança de critério na forma como os encaramos em relação aos "ratos com asas" – como muita gente lhes chama – é certo, mas é compreensível, não acham? Mas são criaturas majestosas. E estes, por não terem um lar fixo que os alimente e cuide deles, são mais magros e esguios, quase que misteriosos, sendo impossível perceber para onde irão depois. Aposto que nem eles sabem.


As motas que vão passando por detrás do banco onde me sentei, fazendo barulho com os seus motores irritantes e praguejantes. As pessoas que iam passando ali, sem intenções de gastar os seus trocados, olhavam para uma ou outra banca, sentindo-se seduzidas pelas cores chamativas dos pimentos e dos tomates ou pelo bom aspeto das alfaces. Olham, recebiam um cumprimento afável dos vendedores e quase que se sentiam na obrigação de levar um saquinho de verduras.


Uns não resistiam à sedução, outros acenavam de volta e continuavam a sua vida, ignorando aquele encontro e prometendo a si próprios voltar ali na semana seguinte, se o tempo o permitisse.

A rua, entre prédios residenciais, com 4 ou 5 andares, de ambos os lados, era motivo de olhares de quem ali vivia perto ou por cima. Das varandas destes prédios cor creme saíam os seus residentes para assistir a esta orquestra de movimentos rurais, mesmo no epicentro da cidade. 


Olham, curiosos, para as pessoas. Reparam na roulotte ao fim da rua, ao fim da feira, onde se assam espetadas e outras iguarias. Sentem o cheiro a subir até aos seus apartamentos e, não raras vezes, acedem ao desafio de descer até ao epicentro de todo aquele cheiro agradável a carne na grelha.


Eu, terminei o cigarro, agradecido por ter parado uns breves minutos para assistir a tão agradável espetáculo. Atirei a beata para o chão, sem a apagar, certificando-me que via o lume incandescente a extinguir-se. Esperei, sentado, até que o único laranja que estivesse a ver fosse o do filtro.


Depois de o fumo parar e o incandescente se extinguir, respirei fundo e pus-me a caminho de casa, sabendo que aqueles cinco foram os melhores minutos do meu dia.

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