Este ano o momento é simbólico. Este ano a presença física desta festividade está apenas no calendário. A data de hoje simbolizava o abraço de um povo que se dividia em nove parcelas, numa só, à volta do resplendor do Senhor Santo Cristo.
Crónica de Rúben Pacheco Correia
Autor, crítico gastronómico e estudante de Direito na FDUL
18 de maio, segunda-feira do Senhor Santo Cristo dos Milagres.
Já todos sabemos que a palavra normalidade não fará parte do dicionário deste ano. Não há cultura, tradição ou religião que não sinta a mudança que nos foi imposta por este novo tempo.
Não podemos deixar que aquilo que nos fez vibrar morra dentro de nós, mesmo não podendo ser vivido e compartilhado fisicamente com outros. Esta é uma semana particularmente difícil. Sobretudo o dia de hoje: 18 de maio, segunda-feira do Senhor Santo Cristo dos Milagres, feriado municipal na maior e mais populosa cidade açoriana, Ponta Delgada, terra onde nasci e estudei.
Sinto a falta dos foguetes que anunciavam a festa, que sinalizavam a procissão, indicando-nos o caminho. Sinto a falta do odor das faias e dos tapetes de flores que davam cor à cidade. Sinto a falta de poder decifrar a expressão da imagem que saía à rua, como se espelhasse o que eu próprio sentia. O que todos sentíamos. Sinto a falta das pessoas que encontram nos milagres do Senhor Santo Cristo, o rosário de emoção que une o povo açoriano, um arquipélago, uma diáspora, numa só ilha. Sinto a falta das filarmónicas. Da morcela com ananás. Das lapas grelhadas, das malassadas, do convívio, das barraquinhas de mesas corridas, como se fossemos uma só família. E somos. Mais do que nunca!
Há, precisamente, 29 anos os açorianos saíram à rua para saudar o Papa João Paulo II, que nos visitava por ocasião das festas do Senhor Santo Cristo dos Milagres. Não era nascido, mas guardo esta imagem no meu coração. Hoje - e pela primeira vez nos 320 anos que a força do Senhor Santo Cristo uniu-se à resiliência do povo açoriano - não podemos sair
à rua para celebrar esta festividade.
Estando a imagem do Senhor em repouso no Convento da Esperança, situado no Campo de São Francisco - onde por esta altura milhares de peregrinos cumpriam as suas promessas - em Ponta Delgada, este município dedicou o seu feriado municipal ao dia das comemorações desta festividade.
Não obstante, e como se diz na terra, este é o dia em que a ilha vem à cidade. Mas é, também, o dia em que o arquipélago e o mundo aterram em Ponta Delgada. Os emigrantes devotos, sobretudo os radicados na América do norte, onde também já têm uma réplica da imagem e onde celebram, em plena baixa de Toronto, os milagres do Senhor Santo Cristo, afirmando esta festividade religiosa como uma das maiores desta cidade canadiana, são parte integrante da grandiosidade destas celebrações.
Este ano o momento é simbólico. Este ano a presença física desta festividade está apenas no calendário. A data de hoje simbolizava o abraço de um povo que se dividia em nove parcelas, numa só, à volta do resplendor do Senhor Santo Cristo.
Nas ruas vazias da nossa cidade, a energia do Ecce Homo está presente a desafiar a nossa fé e aquilo que considerávamos as nossas certezas. Nunca o Senhor esteve tão presente na nossa rotina como nestes tempos de dúvida. Nunca esteve tão perto da nossa saudade e do nosso medo. Que Ele nos mostre o caminho da luz e nos conduza ao abraço coletivo à
volta da sua capa o mais brevemente possível. Onde estiver um açoriano, Estará o Senhor Santo Cristo dos Milagres.
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