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Percamo-nos no tempo?

Vamos ao teatro? #2



de Henrique Raínho



Carlos: Olá, Ana! Ana: Olá! Estás bom? Dormiste bem? Carlos: Dormi, e tu? Ana: Sim. Gostaste do espetáculo? Carlos: Gostei, e tu? Ana: Também... tu gostaste? Adormeceste, caramba! Carlos: Os melhores espetáculos são aqueles em que adormeço. Ana: Como assim? Os que te dão sono? Carlos: Não, não, os que me dão tempo para sonhar! Ana: Ah, e o que é que te faz sonhar num espetáculo? Carlos: Então, não sei dizer-te... nem o leitor acharia piada. Ana: O leitor? Carlos: Esquece. Depois explico! (olha para o relógio) Só temos 15 minutos! Vamos!

Ana: Só? Achei que era mais cedo ahah Carlos: Estás a ver? Ana: O que é? Carlos: Também sonhaste.


Pergunto-lhe, caro leitor, quantos de nós já não tivemos uma conversa semelhante. Dir-me-á que nenhum, e quem sou eu para discordar? De resto, digo-lhe... digo-te... enfim, todo este diálogo foi fabricado, a não ser uma das falas. Essa descoberta cabe-lhe a si se tanto lhe apetecer imaginar.


Agora a sério, pergunto-lhe (pronominalização em -lhe, porque é a sério) outra coisa: quando é que foi a última vez que sentiu o tempo de maneira diferente daquela que o relógio sugere?


Quando é que uma hora pareceu meia, 30 minutos pareceram 15 ou o contrário?


Eu apostaria que lhe aconteceu em momentos em que se perdeu da realidade, em que o seu pensamento se viu de tal maneira envolvido, quiçá inebriado, que a sua perceção do tempo se viu alterada. A hora demorou exatamente o mesmo tempo que todas as horas anteriores a passar, mas desta vez pareceu menos (ou mais) demorada.

Tudo isto se prende com a nossa perceção do tempo, que creio ser um conceito caro a todo o ser humano, em particular aos artistas: na criação, na contemplação ou nos infindáveis graus de relacionamento espaciotemporal que poderá haver entre os dois.


Posto isto, cito uma vez mais a minha professora de interpretação: A nossa profissão tem o dom de parar o tempo.

As artes, no geral, e o teatro, em específico, poderão ser classificados como alguns dos maiores manipuladores da perceção temporal de quem os experiencia. Seja de uma hora ou 3 horas (ditadas pelo relógio), a partir do momento em que um espetáculo nos agarra, os ponteiros vão porta fora e o tempo voa, dilata, estica, encolhe... enfim, altera-se.


Assim, num mundo onde a gestão de tempo parece ganhar um peso titânico, gosto de olhar para as minhas idas ao cinema, ao teatro, a museus ou alguma outra experiência artística, como uma maneira de me perder no meu tempo.

À entrada, saberei a duração do espetáculo decerto, o que me permite desenhar a minha vida em torno disso. Contudo, há uma hipótese e uma vontade de me perder naquele espetáculo. Neste descontrolo percetivo da passagem do tempo, transformo-me em dono e senhor da minha disponibilidade intelectual, uma vez que me consigo libertar das amarras de uma das dimensões mais castradora.


Com isto, caro leitor, infiro que uma ida ao teatro pode ser tão revitalizante das nossas capacidades críticas como uma boa aula de filosofia. Se na crónica anterior me referia à utilidade do teatro pelo seu conteúdo, pela forma como estava construído, etc..., desta feita refiro-me à sua importância pela capacidade de tocar a maneira como percecionamos a hora que passa, e os efeitos que isso tem em nós. Nesse momento de descontrolo, em retrospetiva, creio que somos capazes de nos permitir sentir de maneiras que não achávamos possíveis ou, ainda, seguir raciocínios que, provavelmente, não perseguiríamos. Se isto não é uma oportunidade de reflexão crítica e emocional brilhante, não sei o que será.


Posto isto, vamos ao teatro?


Especial agradecimento ao meu colega e amigo Daniel Teixeira Pinto, pela troca de palavras.


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